O tempo está se
esgotando para os apologistas da Pax Americana
Rostislav Ischenko __ REDE VOLTAIRE
Tradução de Marisa Choguill
Desde que a guerra na Síria demonstrou a inferioridade do armamento dos
EUA comparado ao da Rússia, a questão do fim da hegemonia americana deve ser
revista. De acordo com Rostislav Ischenko, Washington precisa rapidamente tomar
as decisões certas. Se Washington não conseguir superar suas próprias divisões
imediatamente, perderá o controle dos eventos.
O paradoxo da
atual crise global é que, nos últimos cinco anos, todas as Nações relativamente
responsáveis e independentes têm feito esforços tremendos para salvar os
Estados Unidos do desastre financeiro, econômico, militar e político que
avulta. E isto apesar dos movimentos igualmente sistemáticos de Washington para
desestabilizar a ordem mundial, corretamente conhecida como a "Pax
Americana" ("paz americana").
Desde que a
política não é um jogo de soma-zero, isto é, perda de um dos participantes não
implica necessariamente em ganho para o outro, este paradoxo tem uma explicação
lógica. Uma crise surge dentro de qualquer sistema quando há uma discrepância
entre a sua estrutura interna e a soma total dos recursos disponíveis (ou seja,
aqueles recursos eventualmente provarão ser inadequados para o sistema
funcionar normalmente e como de costume).
Há pelo menos três
opções básicas para lidar com esta situação: Através
da reforma, quando a estrutura interna do sistema evolui de forma a melhor corresponder
aos recursos disponíveis; Através
do colapso do sistema, quando o mesmo resultado é alcançado através da
revolução; Através da preservação, quando os ‘inputs’ [entradas, dados] que ameaçam
o sistema são eliminados pela força, e as relações dentro do sistema são cuidadosamente
preservadas numa base de relação desigual (seja entre classes, estratos
sociais, castas ou nações).
O método de
preservação foi tentado pelas dinastias Ming e Qing na China, bem como a de
Tokugawa Shogunate no Japão. Foi utilizado com sucesso (no século XIX) antes da
era da globalização capitalista. Mas, nenhuma dessas civilizações orientais
(embora bastante robustas internamente) sobreviveu à sua colisão com a
civilização européia, tecnologicamente mais avançada (e, portanto, mais
militarmente e politicamente poderosa). O Japão encontrou sua resposta no
caminho da modernização (reforma) na segunda metade do século XIX, a China
passou um século imersa no pântano da dependência semi-colonial e sangrentas
guerras civis, até que a nova liderança de Deng Xiaoping foi capaz de articular
sua própria visão de reformas de modernização.
Este ponto nos
leva à conclusão de que um sistema pode ser preservado somente se ele estiver
protegido contra qualquer influência externa indesejada, ou seja, se ele
controlar o mundo globalizado.
A contradição
entre o conceito de escapar da crise, que tem sido adotada pela elite dos EUA,
e o conceito alternativo — proposto pela Rússia e apoiado pela China, em
seguida, pelas outras nações do grupo BRICS, e, agora, uma grande parte do
mundo — baseia-se no fato de que os políticos em Washington tomaram decisões a
partir da premissa de que eles seriam capazes de totalmente controlar o mundo
globalizado e orientar o seu desenvolvimento na direção que eles desejassem.
Portanto, face à falta de recursos para sustentar os mecanismos que
perpetuassem a sua hegemonia global, eles tentaram resolver o problema
suprimindo energicamente os potenciais adversários para realocar recursos
globais a seu favor.
Se tivessem sidos
bem-sucedidos, os Estados Unidos teriam sido capazes de reprisar os
acontecimentos do final da década de 1980-início da década de 1990, quando o
colapso da União Soviética e do sistema socialista global sob o seu controle
permitiu que o oeste escapasse da crise. Nesta nova fase, a questão é que não
se trata simplesmente de realocar recursos a favor do Ocidente como um todo
coletivo, mas unicamente a favor dos Estados Unidos. Esta mudança ofereceu ao
sistema uma pausa que poderia ser usada para criar um regime para preservar
relações desiguais, durante a qual o controle definitivo da elite americana
sobre os recursos de energia, matérias-primas, finanças, e recursos industriais
salvaguardá-la-ia do perigo de implosão interna do sistema, enquanto a
eliminação de centros de poder alternativo protegeria o sistema de violações
externas, tornando-o eterno (pelo menos por um período historicamente
previsível).
A abordagem
alternativa postulou que a totalidade dos recursos do sistema poderia ser
esgotada antes que os Estados Unidos conseguissem gerar os mecanismos para
perpetuar sua hegemonia global. Por sua vez, isso vai levar à tensão (e
distensão) das forças que garantem a repressão imperial das nações existentes
na periferia global, para o benefício do centro baseado em Washington, o que
mais tarde suscitará o inevitável colapso do sistema.
Duzentos, ou mesmo
cem anos atrás, os políticos teriam agido sob o princípio de que "o que
está caindo, deve-se também empurrar" e se preparado para distribuir a
herança de outro império em ruínas. No entanto, a globalização não só da
indústria e do comércio mundial (que foi alcançada no final do século XIX), mas
também a finança global, provocou o colapso do império americano através de uma
política extremamente perigosa e cara para todo o mundo. Falando sem rodeios,
os Estados Unidos poderiam ter enterrado a civilização sob seus próprios
destroços.
Consequentemente,
a abordagem russo-chinesa fez questão de oferecer a Washington uma opção de
compromisso que endossa a erosão gradual, evolutiva da hegemonia americana,
além da reforma incremental das relações internacionais financeiras,
econômicas, militares e políticas com base no atual sistema de direito
internacional.
A possibilidade de
uma "aterragem suave" foi oferecida à elite dos Estados Unidos da
América [1],
a qual preservaria a grande parte da sua influência e ativos, enquanto
gradualmente adaptando o sistema para melhor corresponder aos presentes fatos
da vida (alinhando-o à reserva de recursos disponíveis), levando em conta os
interesses da humanidade e não apenas de seu "escalão superior", como
exemplificado pelas "300 famílias" que estão na verdade diminuindo
para não mais de trinta.
No final, é sempre
melhor negociar do que construir um mundo novo sobre as cinzas do velho.
Especialmente porque houve um precedente global de acordos semelhantes.
Até 2015, a elite
dos EUA (ou pelo menos aqueles que determinam a política dos EEUU) tinha
certeza de que possuía força financeira, econômica, militar e política
suficiente para paralisar o resto do mundo, preservando a hegemonia de
Washington enquanto privando todos, incluindo (em sua fase final) mesmo o povo
americano, de qualquer soberania política real ou direitos econômicos. Os
burocratas europeus foram importantes aliados para essa elite – ou seja, o
setor da burguesia cosmopolita, compradora da elite da UE, cujo bem-estar
dependia de uma maior integração transatlântica (isto é, sob controle dos
Estados Unidos) das entidades da UE (em que a premissa da solidariedade atlântica
tornou-se dogma geopolítico) e da OTAN, embora isto estivesse em conflito com
os interesses dos membros da União Europeia.
No entanto, a
crise na Ucrânia, que se arrasta muito mais do que o inicialmente previsto, o
impressionante surto de energia política e militar da Rússia ao mobilizar-se
para resolver a crise Síria [2]
(algo para o qual os EUA não tiveram uma resposta adequada) e, mais importante,
a criação progressiva de entidades financeiras e econômicas alternativas que
questionam a posição do dólar como moeda mundial de fato [3],
forçaram um setor da elite da América, que é passível de comprometer-se, a
despertar (por mais de 15 anos essa elite foi efetivamente excluída da
participação em todas as decisões estratégicas).
As últimas
declarações de Kerry [4]
e Obama [5]
– que hesitaram entre a vontade de considerar um acordo mutuamente aceitável em
todas as questões contenciosas (até a Kiev foram dadas instruções "para
implementar Minsk") e a determinação de continuar a política de confronto
– são prova da crescente batalha que está sendo travada em Washington.
É impossível
prever o resultado desta luta – muitos políticos de alto status e famílias
influentes ataram seus futuros a uma agenda que preserva a dominação imperial
para que ela seja renunciada sem dor. Na realidade, bilhões de dólares e
dinastias políticas inteiras estão em jogo.
No entanto,
podemos dizer com certeza absoluta que há uma determinada janela de
oportunidade durante o qual pode ser feita qualquer decisão. E uma janela de
oportunidade está se fechando que permitiria aos EUA fazer uma aterragem suave
com alguns ‘trade-offs’ [compromissos, condições] básicos. A elite de
Washington não pode escapar do fato de que eles estão enfrentando problemas
muito mais graves do que aqueles de 10 a 15 anos atrás. Agora, a grande questão
é como eles irão aterrizar, e embora esse pouso seja mais difícil do que
poderia ter sido, e virá com custos, a situação ainda não é um desastre.
Mas, os EEUU
precisam pensar rápido. Seus recursos estão encolhendo muito mais rápido do que
os autores do plano de preservação imperial tinham esperado. À sua perda de
controle dos países do BRICS pode ser adicionada a incipiente mas ainda
razoavelmente rápida perda de controle sobre a política da UE, bem como o
início das manobras geopolíticas entre as monarquias do Oriente Médio. As
entidades financeiras e econômicas criadas e postas em marcha pelas nações do
grupo BRICS estão a desenvolver-se em conformidade com a sua própria lógica, e
Moscou e Pequim não serão capazes de retardar seu desenvolvimento enquanto
aguardam que os EEUU descubram de repente sua capacidade de negociação.
O ponto de não
retorno vai passar de uma vez por todas em 2016, e depois disso a elite dos EUA
já não mais será capaz de escolher entre as disposições do compromisso e do
colapso. A única coisa que ela então será capaz de fazer será bater a porta
ruidosamente, tentando arrastar o resto do mundo atrás de si para o abismo.
[1] “The
Foreign Policy of Russia: A New Phase”, by Sergey Lavrov, Voltaire
Network, 17 December 2007.
[2] “KALIBRating
the foe: strategic implications of the Russian cruise missiles’ launch”, by
Vladimir Kozin, Oriental Review (Russia), Voltaire Network, 14
October 2015.
[5] “Speech
by Barack Obama at 70th UN General Assembly”, by Barack Obama, Voltaire
Network, 28 September 2015.
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