domingo, 15 de novembro de 2015

A absoluta centralidade da Síria        


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Weekly Comment, 16-21/10/2015,* Alastair Crooke, in Conflicts Forum             

Tradução pelo Coletivo Vila Vudu               

É virtualmente a norma na Europa e EUA ver a Síria através de uma única lente paradigmática: por essa lente, prosperidade, ordem, segurança e ausência de conflito são definidas como função direta da disseminação da 'democracia'; e 'democracia', por sua vez, é conceito econômico – uma classe média global, (neo)liberal, secular e consumista, que cria um sistema 'financeirizado' de ordem. Nesse sentido 'democracia' já nada tem a ver com, por exemplo, o tradicional "nós o povo"/"do povo, pelo povo, para o povo".


A antítese dessa 'visão da época' [orig. zeitgeist] insiste na autenticidade e mérito de valores nacionais não ocidentais e no concomitante direito de as nações viverem cada uma o seu próprio modo de ser; e quem rejeite especificadamente a hegemonia supra-soberania de que tanto fala a acima citada 'ordem liberal'– é visto no ocidente como ameaça à paz, à ordem, aos próprios valores pelos quais, na avaliação de muitos no ocidente, todo o mundo deve deixar-se reger. O governo sírio, claro, foi deliberadamente convertido numa encarnação de tudo que haveria de errado no pensamento 'não ocidental'.


É um modo de olhar para a Síria – o modo que prevalece em grande parte da Europa. E assim considerada, a Síria, como tal, torna-se extensão da Guerra Fria: mais uma rodada nesse conflito civilizacional, no qual a Rússia é mostrada como se defendesse (e representasse) um sistema não liberal, sem graça, de ameaça à segurança de pessoas e povos (a perfeita antítese do paradigma da ordem liberal). E matando os chamados sírios 'moderados', não o ISIS/ISIL/Daesh/Estado Islâmico (como o ocidente alega), a Rússia não estaria, pela narrativa da 'ordem liberal', promovendo algum 'futuro' democrático, de ordem liberal, para a Síria – mas destruindo-o.


É um modo de ver as coisas. Mas é modo que, avaliado pelos seus próprios termos simplesmente deixa passar, como se não existissem, os motivos (absolutamente não liberais) que levam aliados do 'ocidente' como Arábia Saudita, Turquia e Qatar a guerrear para destruir o estado sírio. Podem até ser aliados do ocidente, mas absolutamente não dão nenhuma importância a qualquer formulação de ordem liberal. É também 'um modo' de dar claro impulso àqueles ocidentais que se assentam na premissa de sua 'vitória' de Guerra Fria sobre os soviéticos, para que se unam contra a Rússia. Há aqui risco real de esse impulso vir a dominar o pensamento nos EUA e na Europa sobre a Síria. Nesse caso, o risco é de que vejam a árvore, mas não vejam o bosque: a absoluta centralidade da Síria.


Em resumo, esse paradigma liberal/não liberal simplesmente encobre e obscurece a centralidade da Síria para o futuro do mundo da geopolítica (dado que 'ordem' não é a palavra certa nesse caso – que já está esgotada). 


Outro modo para ver a intervenção russa na Síria, seria em termos de 'assuntos não resolvidos' – de velhos 'nós' que jamais foram cuidados e desatados. Em resumo, nós podemos perceber a Síria em termos do choque entre a ordem liberal e o não liberalismo, mas a Rússia vê a mesma Síria de modo diferente. O problema com o pensamento binário é, precisamente, que ele encobre a centralidade do significado da Síria – na percepção de russos e seus aliados. Ao não ver esse aspecto crucialmente importante, o pensamento binário gera risco muito maior, para o futuro.


Por 'assuntos não resolvidos', referimo-nos às dores herdadas e aos traumas enterrados que são restos das duas Grandes Guerras. A Alemanha, traumaticamente, perdeu uma geração de homens mortos no massacre de Stalingrado (a Rússia perdeu mais gente). A batalha de Stalingrado é frequentemente citada como a mais sangrenta na história das guerras. Ali (em Stalingrado), a Alemanha essencialmente foi derrotada (adiante foi novamente derrotada na Normandia). Depois, a Alemanha deliberadamente buscou alívio psicológico ligando-se à França (ato que viria a ser a pedra inaugural da União Europeia); mas a ferida que Stalingrado abriu – no ocidente – não foi nunca curada pela Alemanha, nem psicologicamente nem politicamente. Ela permanece enterrada na memória coletiva das duas nações, como ferida que não cicatriza.


A Rússia, em especial, tendo experimentado a perda dolorosa de tantas vidas, nunca viu sua perda ser reconhecida e honrada. Em vez disso, foi posta em ostracismo pelos ex-aliados e tornou-se objeto de longo isolamento e constante atrito na Guerra Fria. Quando a Rússia aceitou, ainda consciente dos nós não desatados e sempre doloridos desde Stalingrado, de deixar que o Muro de Berlin caísse, nem assim passou a ser mais bem acolhida pela Europa. Ao contrário. A Rússia imediatamente sentiu que estava sendo encurralada pela OTAN que nunca desistiu de tentar avançar para o leste, diretamente para junto das fronteiras russas. Assim também, quando a União Soviética tentou desescalar a Guerra Fria, supondo que passaria a ser tratada como par dos europeus, logo percebeu, amargamente, o quanto se enganara. Diferente do que supunham os russos, o gesto foi denegrido, e os ex-inimigos da Rússia avançaram sobre o palco, aos gritos de que teriam alcançado uma vitória civilizacional.


Essa pode não ser a percepção ocidental da história, mas, sim, é a percepção que os russos têm da história deles. Não é questão de argumentos e contra-argumentos: é questão psicológica, de alma. E, então, veio a Ucrânia. Ficou imediatamente claro para os líderes russos que a qualquer momento – sem mais nem menos – qualquer questão externa poderá ser incendiada, a ponto de a Rússia ser empurrada para a guerra. (Há muitas e muitas provas de que esses medos, sobre a Ucrânia, foram muito reais entre os russos).


E o que tudo isso tem a ver com a Síria? É que a Rússia sente que tem de sair dessa 'caixa' de paredes que sempre desabam para dentro, com a OTAN sempre desgastando as forças da Rússia. A Rússia decidiu que teria de forçar a questão; insistir em ser reconhecida como parceiro confiável na ordem internacional, ou reconciliar-se com a possibilidade de que aqueles eventos (talvez novamente surgidos do nada) acabariam por levar o país a algum tipo de confronto com os EUA e, talvez, também com a Europa.


Não que a Rússia não tenha qualquer interesse na Síria. O país crê que está vendo a situação do Oriente Médio com total clareza.


Putin vê todos os estados-nação de toda a região em acelerado processo de erosão e enfraquecimento: o Iraque fraturado; a Síria em conflito; o Líbano sem estado funcional; a Líbia em caos total; o norte da África vulnerável, o Iêmen em anarquia e a Arábia Saudita varrida por múltiplas crises. A menos que o ISIS/ISIL/Daesh/Estado Islâmico e seus aliados wahhabistas sejam detidos – efetivamente detidos, decisivamente detidos – toda a região está vulnerável a degradar-se cada vez mais rumo ao caos cada vez mais profundo. 


A Síria é a verdadeira linha de frente da Rússia. A Rússia recorda como, depois da guerra afegã, os wahhabistas espalharam-se a partir do Afeganistão, alcançando a Ásia Central; e recorda também como a CIA e a Arábia Saudita inflamaram a insurgência chechena e a usaram para enfraquecer a Rússia.


E por que a Síria? Será que a Rússia tem interesses ali? Não. A Síria tem – e isso, sim, realmente interessa à Rússia – presidência efetiva e exército que já está engajado na luta contra o wahhabismo. De fato, a Síria é o eixo-pivô em torno do qual essa 'guerra' girará.


Mas o presidente Putin também partilha a percepção de muitos na região, de que os EUA (e aliados) não estão seriamente empenhados em derrotar o ISIS/ISIL/Daesh/Estado Islâmico. Ao sentir que o ocidente finalmente estava sendo atraído pela Turquia para a ideia de uma zona aérea de exclusão, que só faria na Síria o mesmo que fez na Líbia, e só acabaria em caos, Putin jogou sua mão surpresa: e entrou na guerra 'contra o terror', bloqueando o projeto turco (ver também 
nosso "Comentário Semanal" anterior) – e desafiou o 'ocidente' a aliar-se a ele na aventura.


Ao fazê-lo, Putin muito evidentemente deixou aberta a porta para os EUA – convidando-os repetidas vezes a unirem-se à Rússia, embora talvez contando com que os EUA, inicialmente, teriam de resistir (por causa dos laços dos EUA com o Golfo).


A estratégia de Putin para a Síria é, essencialmente, que nenhum acordo político surgiria simplesmente porque enxames de inimigos tivessem sido forçados, como rebanho, para dentro de uma sala de reuniões em Genebra. A pré-condição inicial dos EUA para as conversas, insistindo na deposição de Assad, absolutamente não incentivou a oposição a negociar com seriedade qualquer partilha de poder com o estado sírio. Dado que os EUA exigiam a deposição de Assad, bastaria que a oposição esperasse, e receberia de bandeja, das mãos de EUA e aliados, um Estado sem presidente.


O cálculo de Putin foi diferente. Para ele, nesse caso, algum acordo político só seria viabilizado pela força das armas: a influência dominante, nociva, dos terroristas tinha de ser esvaziada, antes de que os 'reconciliáveis' (na terminologia Rumsfeldiana) criassem coragem para se mostrar à discussão. 


Em resumo, se o 'ocidente' vê a força militar russa como inimiga, seja como for, de algum acordo político, o presidente Putin (e também o presidente Assad) dizem que a dominação pelos terroristas, para a qual o 'ocidente' contribuiu, de fato veda completamente a possibilidade de acordo político. O recente convite de Putin ao 
Presidente Assad, para visitar Moscou parece ter sido concebido para 'dizer' e sublinhar duas coisas ao 'ocidente': que o presidente Assad está, sim, realmente comprometido com uma reforma política; e para descartar completamente qualquer ideia de que a Rússia veria o presidente Assad como componente 'descartável' em alguma solução política.


Por enquanto, parece que o governo dos EUA vai deixar o trabalho pesado, na Síria, para os russos. Esperarão e observarão, ao mesmo tempo em que arrebanham uma coalizão internacional para pressionar a Rússia no sentido de que respeite os interesses norte-americanos, seja qual for o encaminhamento político. 


O que parece, hoje, ainda mal avaliado em alguns setores ocidentais é que o efetivo poder aéreo 
que está sendo reunido, combinado com forças em solo que têm vasta experiência naquela região, realmente alterará os fatos em campo. E fatos em campo alterados, alterarão também, dramaticamente, a equação política. 


Silenciosamente, os EUA provavelmente expandirão a cooperação com a Rússia. Parece provável que o presidente Putin não espere, nesse estágio, mais que isso. Mas se a Síria for um sucesso, ele talvez espere que floresça uma parceria ocidental, na sequência, quando chegar a hora do Iraque.


O risco em tudo isso é que o 'ocidente' se volte contra Putin – quando as percepções recaírem viciosamente nos velhos termos do meme 'liberal/não liberal' da Guerra Fria.


Nesse caso, o significado da iniciativa de Putin para a Síria terá sido desperdiçado, e as hostilidades escalarão. Putin não está só enfrentando a questão da política ocidental para a Síria. Está tentando enfrentar a própria questão do lugar da própria Rússia no mundo contemporâneo: livrar-se de vez do paradigma do pensamento do pós-guerra no qual a Rússia viu-se presa. 


É um jogo, porque o gesto em si – se for bem-sucedido – modelará mais amplamente o Oriente Médio e toda a geopolítica global.


Se falhar, e prevalecer a dinâmica doméstica dos EUA, inevitavelmente os norte-americanos caminharão na direção de confronto com a Rússia (e com a China). Muito empenho de bastidores foi investido pela Rússia nessa reaproximação com a China, para que a Rússia admita sem reação uma volta à antiquada doutrina da triangulação de Kissinger (de manter Rússia e China sempre em situação de tensão, uma contra a outra).


Na Síria, Putin está forçando a mão, mas também está oferecendo aos EUA uma via para escapar de inevitável escalada contra ambos os países, Rússia e China, às vésperas da eleição de novo presidente dos EUA, que talvez seja eleito para 'endurecer'. E essa iniciativa provocou 
profundo choque no establishment militar 'ocidental'. 


Presumia-se que a Rússia estivesse muito atrás do 'ocidente' em termos de armamento convencional e de suas plataformas aéreas; e seus exércitos sempre foram tratados como, de certo modo, 'de segunda classe'. Mas o que o 'gesto' de Putin na Síria tornou também muito visível é a revolução que o mesmo Putin conduziu, em termos de reorganizar as forças armadas e atualizar o armamento disponível, depois da guerra na Geórgia em 2008.


"O Novo Grande Jogo na Eurásia avançou saltos e saltos semana passada, depois que a Rússia disparou 26 mísseis cruzadores, do Mar Cáspio, contra 11 alvos no ISIS/ISIL/Daesh por toda a Síria e destruiu todos. Esses ataques do mar foram a primeira vez, que se saiba, em que foram usados operacionalmente os mísseis cruzadores estado-da-arte SSN-30A Kalibr.

"O Pentágono está apoplético, porque essa mostra da tecnologia russa revelou ao mundo que acabou o monopólio dos EUA sobre os mísseis de longo alcance. Os analistas do Pentágono ainda trabalhavam sob o pressuposto de que o alcance desses mísseis não ultrapassaria 300 quilômetros.

"Além do mais, a OTAN foi avisada: a Rússia pode acabar com eles, num flash – como a vi ser avisada em conversas na Alemanha, semana passada. A retórica furiosa, do tipo "você está violando o meu espaço aéreo" tampouco tem qualquer serventia."

Sejamos claros: a Rússia já mostrou que não apenas alcançou, mas possivelmente já ultrapassou os EUA em termos de tecnologia de mísseis, e que tem capacidade para interferir nos sistemas de comando, controle e orientação da OTAN (novamente, se viu claramente na Síria). Se a coalizão dos 4+Hezbollah avançar para além da Síria (com o sempre ativo suporte dos chineses), todas as bases militares e porta-aviões dos EUA que cercam o Irã e estão planejados para atuar na Eurásia não se tornam apenas redundantes – tornam-se também reféns vulneráveis. 


OTAN já não pode sequer contar com automática superioridade aérea. Não surpreende que os EUA já tenham retirado seu porta-aviões do Golfo Persa.


A 'mensagem' de Putin para a Síria tem portanto uma centralidade que ultrapassa em muito a questão de se alguns sírios moderados foram ou deixaram de ser mortos, se cooperavam com a Frente Al-Nusra (al-Qaeda) e os detalhes de qualquer governo de transição na Síria. Todas essas são iniciativas no âmbito do microcosmo. 


O macrocosmo aí é o repetido convite que Putin fez e repete, para desescalar todos os conflitos com o 'ocidente' – oferta que balançou até uma surpreendida OTAN, agora que já sentiu no lombo o peso do novo grande porrete da Rússia. Aí está a floresta que grande parte do 'ocidente' não consegue ver, porque só vê 'árvores' individuais e outros detalhes da situação síria. O que resultar da guerra síria modelará muitas, muitas outras grandes coisas.



* Esse comentário, em versão mais curta, foi publicado em WorldPost / Huffington PostWhy Russia Perceives Syria as Its Front Line [Por que a Rússia vê a Síria como sua linha de frente], Alastair Crooke, 28/10/2015).


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