sábado, 24 de outubro de 2015

Guerra e Paz — revisitadas 
         
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Pepe Escobar, Asia Times 
Traduzido Pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu           

E, claro, ele citou Tolstoy.

O presidente Vladimir Putin da Rússia, mais uma vez, teve chamar para si todas as atenções, na 12ª Reunião Anual do Clube Internacional de Discussões Valdai, em Sochi, para destacar a tremenda gravidade da atual conjuntura geopolítica.


Como "Grandes Destaques" em política externa e estratégia militar comparativa, o discurso do presidente Putin já se qualificou como leitura obrigatória em qualquer curso de ciências políticas em qualquer lugar do mundo. O discurso integral [ing.] e uma sessão crucialmente importante de perguntas e respostas com o público (só convidados) presentes estão 
aqui (e traduzidos ao português, no Blog do Alok). O discurso em vídeo está aqui.

Vamos logo a alguns dos imperdíveis destaques.

Sobre "rebeldes moderados" na Síria: "
Não preciso fazer jogos de palavras aqui: não é possível classificar terroristas em "moderados" e "não moderados". Para começar, ninguém até hoje viu qualquer diferença. Talvez, pela avaliação de algum especialista, os militantes chamados "moderados" degolam gente em doses limitadas, ou com superior delicadeza." (...) "É impossível combater o terrorismo, se alguns terroristas são usados como aríete para derrubar governos legítimos, mas que um ou outro não aprecia. Ninguém pode livrar-se de terroristas que tenham sido 'alugados'. É ilusão supor que 'depois' será facílimo descartá-los, retirar deles algum poder que lhes tenha sido dado, ou conseguir com eles algum 'acordo' de paz ou de convivência. A prova disso é hoje a situação na Líbia".

Sobre a questão da partição da Síria: "
Acho que esse é o cenário de pior caso possível. É opção inaceitável, porque não ajudaria a resolver o conflito, mas, sim, o tornaria maior e o prolongaria. Viraria conflito permanente. Se a Síria fosse dividida em territórios separados, eles inevitavelmente lutariam entre eles, luta sem fim, e nenhum resultado positivo adviria disso." (...) "Considerem o seguinte: se as mesmas gangues terroristas tivessem ocupado Damasco ou Bagdá, as mesmas gangues terroristas teriam alcançado, na prática, status de poder oficial. Em pouco tempo teriam criado sua própria fortaleza e trincheira para expansão global. Alguém está pensando nessa possibilidade?"

Sobre a campanha aérea dos russos na Síria: "Depois que autoridades sírias nos procuraram oficialmente para pedir apoio, tomamos a decisão de lançar operação militar russa naquele país. Já disse e repito: é ação absolutamente legítima e seu único objetivo é restaurar a paz.” Putin faz uma clara distinção entre o alvo de Washington – "Assad tem de sair" – e o alvo de Moscou – combater todos os ramos do terror salafista, antes de que vão para a Rússia.

Sobre o dossiê nuclear iraniano: “Tudo sempre teve a ver com tentar destruir o equilíbrio estratégico, alterar a favor deles o equilíbrio de forças, não só para dominar, mas para ter oportunidade de impor o desejo deles ao resto do mundo: aos concorrentes estratégicos e também, é minha opinião, aos aliados deles mesmos.”

Sobre armas nucleares: “Esse é cenário extremamente perigoso, que agride todos os povos do mundo, inclusive, como vejo as coisas, agride também o povo dos EUA.

A contenção nuclear perdeu o valor. Alguns, talvez, tenham voltado a crer na fantasia de que a vitória de algum lado, num conflito mundial, voltaria a ser possível – e sem consequências irreversíveis, inaceitáveis, como dizem os especialistas, para o vencedor, se chegasse a haver vencedor.”

Em mundo que fizesse sentido, esse discurso seria saudado como sólida realpolitik. Mas vivemos sob a penumbra da novilíngua do Império do Caos e da histeria neoconservadora/neoliberal conservadora: num mundo no qual o Iraque teria armas de destruição em massa; o Irã estaria fazendo uma bomba atômica; as "listas de matar" são ditas legítimas; a al-Qaeda na Síria é declarada "rebelde moderada"; Rússia, China e Irã são "ameaças" para o Pentágono piores queISIS/ISIL/Daesh; e o Pentágono crê que possa derrotar, em guerra, qualquer daquelas 'ameaças' – Rússia, China, Irã – sem nenhuma consequência. Mundo no qual paz é guerra.


Aqueles "pensadores" sauditas


Agora, quanto aos fatos em campo. É puro pensamento desejante esperar que Washington, Ancara, Riad e Doha deixarão que a Síria simplesmente "se safe", depois de todos esses anos apoiando, treinando e armando uma galáxia predominantemente de salafistas dedicados a mudar regimes. Ao mesmo tempo, Putin e o Kremlin sabem que esses atores já não conseguem mais armas diretamente os tais "rebeldes moderados", porque a agenda deles está agora plenamente exposta diante da opinião pública global.

Mas não podem? Ah, sim, sim, eles podem.

Em campo, por todo o "Siriaque" Sykes-Picot-em-ruínas, o que se desenrola agora essencialmente põe os “4+1” – Rússia-Irã-Síria-Iraque plus o Hezbollah, incluindo o centro conjunto de inteligência que montaram em Bagdá – contra o combinado CCG-OTAN, tipo Turquia, Arábia Saudita e Qatar. Está em preparação uma elaborada guerra à distância, a ser combatida por terceiros ["proxy war", literalmente, "guerra combatida por procuração" (NTs)] – e todos e todos os tipos de alertas vermelhos começam a acender na minha cabeça.

Confusão, confusão por todos os lados. Comecemos pelos serviçais, do CCG. A Casa de Saud está apoplética com o iminente renascimento político, diplomático e comercial do Irã, sem falar que Teerã está vencendo nos dois fronts, no Iraque e na Síria.

Paralelamente, os bárbaros fanáticos que se fazem passar por imãs na Arábia Saudita já declararam outra Jihad, contra a Rússia. "Pensadores" (?) sauditas querem que Riad lidere uma coalizão contra os "remanescentes" do Exército Árabe Sírio, o Hezbollah e conselheiros iranianos, para acelerar a mudança de regime em Damasco.

É útil lembrar que os sauditas são parte do que tenho chamado de 
Coalizão dos Oportunistas Finórios (COF), liderada pela retaguarda por Washington. Os tais "pensadores" sauditas não percebem que essa nova "coalizão" já nasceria em rota de colisão frontal com a Força Aérea Russa.

Mas ainda não é esse o píncaro do Supremamente Patético. Chega-se a ele, quando o Qatar começar a resmungar sobre "intervenção militar direta" na Síria. O ministro de Relações Exteriores do Qatar Khalid al-Attiyah disse à CNN que "Qualquer coisa que proteja o povo sírio e a Síria contra a partição, não pouparemos nenhum esforço para protegê-los, com nossos irmãos sauditas e turcos, não importa o que seja.”

Nesse nível de geopolítica alucinada, tudo que resta é citar outro 
ator demente, fazedor de jihadistas Bandar Bush (que ameaçou Putin cara a cara, nada menos que isso), o mesmo que descreveu o Qatar – corretamente – como "300 pessoas e um canal de TV". Os "pensadores" do CCG que conceptualizem os F-16s sauditas e qataris a bombardearem forças iranianas ao lado da base aérea russa em Latakia, um par de Sukhois que reduz os F-16s sauditas e qataris a cinzas, e depois... o quê? O Pentágono declara a 3ª Guerra Mundial? 

E, para completar o indispensável sketch pós-Monty Python, que venha o – tresloucado – rei Salman da Arábia Saudita, plus o mini-emir do Qatar, a deliberarem, numa festinha whisky/cognac/dança-no-colo sobre como guerrear simultaneamente contra Rússia e Irã, só para que a al-Qaeda na Síria consiga obrar uma mudança de regime em Damasco.

É sempre iluminador ter em mente o que o escreveu o escritor tunisiano Hamadi Redissi: "No wahhabismo cru, reúnem-se todas as teses do Islã milenarista, misantropo, belicoso, anticristão e antissemita, misógino." Ou do escritor argeliano Bualem Sansal: "O mundo árabe do Papa [orig.Papa’s Arab world] estará acabado logo que seja esmagada essa coisa absurda, esse clube de falsos príncipes arrogantes e cruéis que posam como guardiões de uma mítica raça árabe e do verdadeiro Islã.”

Bem... As coisas não estão muito melhores no reino do Grão Turco Salafista em terno azul, o sultão Erdogan.

Assumindo-se que haja alguma real coordenação Moscou-Washington (e esse é um grande "se") para vedar a fronteira turco-síria – onde já está implantada uma zona aérea de exclusão de facto, controlada pela Rússia –, não só os do ISIS/ISIL/Daesh, mas também os "rebeldes moderados" da al-CIA, ficarão sem contato com suas linhas de suprimento.

Três consequências são imediatas: (1) nada de "paraíso seguro" controlado por turcos no norte da Síria implementado por brigadas turcomenas (já aconteceu). (2) Nenhuma possibilidade de Ancara anexar Aleppo. (3) O fim de todos os elaborados planos para aquele nefasto gasoduto do Qatar, pela Síria, diretamente para a Turquia, para abastecer consumidores europeus – e uma das razões absolutamente chaves para fomentar a tragédia síria.

Sultão Erdogan o Vanglorioso não conseguirá conviver com isso.


Paz ainda é guerra?


Com Bagdá avançando em sua própria luta contra ISIS/ISIL/Daesh – recebida com ensurdecedor retumbante silêncio da imprensa-empresa 'ocidental' já desmoralizada até o Juízo Final –, Moscou continua a pressionar para fazer ouvir a voz da razão.


*****

A espetacular aparição de Bashar al-Assad em Moscou – que enfureceu neoconservadores e neoliberais conservadores até o enlouquecimento – veio complementada por jantar de altíssimo nível com Putin, Medvedev, Lavrov e Shoygu. Nada poderia ser mais claro que isso: a ordem das prioridades é combater o "Califato" até a extinção; e conduzir, paralelamente, um processo político. Esqueçam qualquer 'mudança de regime'.

Logo depois, Putin informou, por telefone, o sultão Erdogan e o rei Salman. E os ministros de Relações Exteriores de Rússia, EUA, Turquia e Arábia Saudita reuniram-se em Viena ontem, para discutir o mapa do caminho. Moscou tem de convencer Riad de que Teerã tem de estar também à mesa. É óbvio, mas vá você raciocinar com os tais "pensadores" sauditas. Até John Kerry mostrou-se, muito pouco tipicamente, razoável, destacando que todos os países que têm algum interesse na Síria, inclusive Rússia e Irã, concordam quanto à necessidade de uma Síria una, secular e pluralista governada pelo consentimento dos próprios sírios.

Assim, extrapolando a partir do discurso de Putin, eis o pé em que guerra e paz estão no momento. Mas já "Deu a louca no mundo" e hoje paz é guerra, como se todos tivéssemos sido deixados em suspense, à espera do que um bando de wahhabistas ensandecidos fará a seguir


Pepe Escobar - é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna no Asia Times Online; é também analista de política de blogs e sites como:  Sputinik, Tom Dispatch, Information Clearing House, Red Voltaire e outros; é correspondente/ articulista das redes Russia Today e Al-Jazeera.



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