Washington relança seu projecto de partição do Iraque
17 jun 2014
Por Thierry Meyssan- Rede VoltaireTradução: Alva
O brusco colapso do Estado iraquiano é apresentado pela imprensa internacional como sendo a consequência do ataque do grupo terrorista EIIL. Mas, quem poderá crer que um Estado poderoso, armado e organizado por Washington, poderia sucumbir em menos de uma semana diante de um grupo jihadista, oficialmente independente de qualquer Estado? Dito de outro modo, quem poderá crer que aqueles que apoiam o EIIL na Síria condenam, com sinceridade, a sua acção no Iraque? Thierry Meyssan revela o que as cartas escondem.
Desde 2001, o estado-maior dos Estados Unidos tenta fracturar o «Próximo-Oriente alargado» numa multiplicidade de pequenos Estados etnicamente homogéneos. O mapa da região remodelada foi publicado em julho de 2006 [1]. Ele prevê a divisão do Iraque em três, um Estado sunita, um xiita e um curdo.
O falhanço de Israel face ao Hezbolla, no verão de 2006 [2], e o da França e do Reino Unido face à Síria em 2011-14, deixava supôr que este plano tinha sido abandonado.
Não é o caso: o estado-maior dos EU tenta retomá-lo por intermédio destes condottieres modernos que são os Jihadistas.
Os eventos surgidos no Iraque, na semana passada, devem ser vistos sob este ângulo. A imprensa internacional insiste na ofensiva do Emirado islâmico no Iraque e no Levante (EIIL ou «Daesh» em árabe), mas esta é apenas uma parte da vasta acção em curso.
A ofensiva coordenada do EIIL e dos Curdos
Numa semana, o EIIL conquistou o que deveria tornar-se um emirado Sunita, enquanto os peshmergas (combatentes curdos-ndT) conquistaram o que deveria ser o Estado curdo independente.
O exército iraquiano, formado por Washington, deu Niníve aos primeiros e Kirkuk aos segundos. A sua própria estrutura de comando facilitou a desintegração: os oficiais superiores, tendo que recorrer ao gabinete do Primeiro-Ministro antes de mover as suas tropas, eram ao mesmo tempo privados de iniciativa de jogo e instalados como reizinhos nas suas zonas de acção. Por outro lado, era fácil ao Pentágono corromper certos oficiais para que eles incitassem os seus soldados à deserção.
Os parlamentares, convocados pelo Primeiro-ministro Nouri-Al-Maliki, também desertaram e não votaram o estado de emergência por falta de quorum, deixando o governo sem possibilidades de resposta.
Sem outra escolha para salvar a unidade do seu país, al-Maliki apelou a todos os aliados possíveis e imagináveis. Primeiro apelou ao seu próprio povo em geral, e à milícia xiita do seu rival Moqtada el-sadr em particular (o Exército de Mahdi), depois aos guardas da Revolução iranianos (o general Qassem Suleimani, comandante da força Jerusalém está, no momento, em Bagdad), finalmente aos Estados Unidos a quem ele pediu para voltarem e bombardear os assaltantes.
A imprensa ocidental sublinha, não sem razão, que o modo de governar do Primeiro- ministro freqüentemente prejudicou, quer a minoria Sunita árabe, quer os laicos do Baas, tanto pareceu ser favorável sobretudo aos Shiitas. Porém, esta constatação é relativa: os Iraquianos reconduziram, aquando das eleições gerais de 30 de abril, a coligação (coalizão-Br) de Nouri al-Maliki. Esta obteve um quarto dos votos, ou seja três vezes mais que o movimento de Moqtada el-Sadr, tendo o resto dos votos ficado espalhado entre uma míriade de pequenos partidos.
A preparação da ofensiva contra a autoridade de Bagdad
A ofensiva do EIIL, por um lado, e dos Peshmergas por outro foi sendo preparada ao longo de muito tempo.
O Curdistão iraquiano começou a nascer, sob proteção dos Estados Unidos e do Reino Unido, com a zona de exclusão aérea decretada entre as duas invasões ocidentais (1991-2003). Depois com o derrube do presidente Saddam Hussein, ele adquiriu uma muito grande autonomia e entrou logo na esfera de influência israelita. Deste ponto de vista, é inconcebível que Telavive tenha estado ausente na tomada de Kirkuk. De facto, o actual governo regional de Erbil (capital curda-ndT) alargou a sua jurisdição, ao conjunto da zona iraquiana prevista pelo estado-maior Americano para formar o Curdistão independente.
O EIIL é uma milícia tribal Sunita, tendo integrado o grupo combatente da Al-Qaida no Iraque depois da partida de Paul Bremer III, e a entrega do poder político aos Iraquianos. A 16 de maio de 2010, um responsável da Al-Qaida no Iraque que tinha sido libertado em circunstâncias desconhecidas, Abou Bakr el-Baghdadi, foi nomeado emir e esforçou-se, posteriormente, por colocar a organização sob a autoridade da Al- Qaida.
No começo de 2012 combatentes do EIIL criam na Síria o Jabhat al-Nosra (quer dizer a Frente de apoio ao povo do Levante), como ramo sírio da Al-Qaida. Este grupo desenvolve-se com o relançamento do ataque franco-britânico contra a Síria, em julho 2012. É, finalmente, classificado como «organização terrorista» por Washington, no fim do ano, apesar dos protestos do Ministro francês das Relações exteriores (Negócos Estrangeiros-Lu), que saúda neles «o pessoal que faz o trabalho árduo no terreno» (sic) [3].
Os sucessos dos jihadistas na Síria, até à primeira metade do ano de 2013, modificaram a atratividade dos seus grupos. O projeto oficial da Al-Qaida de uma revolução islâmica global apareceu como utópico, enquanto a criação de um Estado islâmico num determinado território parecia ao alcance da mão. Daí a idéia de lhes atribuir a remodelagem do Iraque, que os exércitos dos EU não tinham conseguido realizar.
A operação plástica do EIIL foi realizada na Primavera de 2014, com a libertação de prisioneiros ocidentais, que ele detinha, Alemães, Britânicos, Dinamarqueses, Americanos, Franceses e Italianos. As suas primeiras declarações confirmavam, em todos os detalhes, as informações dos serviços secretos sírios: o EIIL é enquadrado por oficiais norte-americanos, franceses e sauditas. Entretanto, rápidamente os prisioneiros libertados faziam marcha-atrás e desdiziam as suas declarações sobre a identidade dos carcereiros. Foi neste contexto que o EIIL rompeu com a Al-Qaida, em maio de 2014, assumindo- se como rival, enquanto a Al-Nosra permaneceu como ramo oficial da Al-Qaida na Síria. Claro que, tudo isso nada mais é que uma fachada porque, na realidade, esses grupos são, desde a sua criação, apoiados pela CIA contra os interesses russos (Afeganistão, Bósnia-Herzegovina, Chechénia, Iraque, Síria).
Regressado em maio a organização regional, (e não mais a antena regional de uma organização global), o EIIL preparou-se para cumprir o papel que os seus comanditários lhe tinham atribuído há vários meses.
A organização é claro controlada, no terreno, por Abu Bakr al-Baghdadi, mas está sob a autoridade do príncipe Abdul Rahman al-Faisal, irmão do príncipe Saud al-Faisal (ministro das Relações Exteriores saudita desde há 39 anos) e do príncipe Turki al- Faisal (antigo diretor dos serviços Secretos e actual embaixador em Washington e Londres).
Em maio, os al-Faisal compraram uma fábrica de armamento na Ucrânia. Os depósitos(estoques-Br) de armas pesadas foram transportados por avião para um aeroporto militar turco, de onde o MIT (Serviço Secreto Turco ) os encaminhou por comboios (trens-Br) especiais para o EIIL. Parece pouco provável que esta cadeia logística possa ter sido implementada sem a Otan.
A ofensiva do EIIL
O pânico que tomou conta da população iraquiana é o reflexo dos crimes cometidos pelo EIIL na Síria: degolas, em público, dos «muçulmanos renegados» e crucificação de cristãos. Segundo William Lacy Swing (antigo embaixador dos EU na África do Sul, depois nas Nações Unidas, e actual diretor do Gabinete das Migrações internacionais), pelo menos 550 mil iraquianos teriam fugido diante dos jihadistas.
Estes números mostram a inépcia das estimativas ocidentais sobre o EIIL, segundo os quais ele não dispõe senão de 20 mil combatentes no total da Síria e do Iraque. A verdade é, provavelmente, três vezes superior, na ordem dos 60 mil combatentes; a diferença sendo feita exclusivamente por estrangeiros, recrutados no conjunto do mundo muçulmano e na maior parte das vezes não árabes. Esta organização tornou-se o maior exército privado do mundo, imitando no mundo moderno o papel dos condottieri da Renascença europeia.
Ela deverá desenvolver-se ainda mais considerando os seus espólios de guerra. Assim, em Mossul, ela capturou o Tesouro do distrito de Niníve, ou seja 429 milhões de dólares em dinheiro (o que chega para pagar os seus combatentes durante um ano completo). Além disso, apoderou-se de numerosos Humvees e de 2 helicópteros de combate que ela, imediatamente, integrou no seu dispositivo. Como os jihadistas não têm os meios para formar os pilotos, a imprensa internacional sugere que eles sejam antigos oficiais baasistas do regime do presidente Saddam Hussein. O que é altamente improvável, considerando que a guerra que opõe os baasistas laicos aos jihadistas define o cenário de fundo da guerra na Síria.
Reações internacionais
A ofensiva dos Peshmergas e do EIIL era esperada pelos partidários da Arábia Saudita na região. Assim, o presidente libanês Michel Suleiman (que tinha concluído uma alocução em janeiro por um ressonante «Viva a Arábia Saudita!», em vez de um «Viva o Líbano!») tentou, por todos os meios, obter uma extensão do seu mandato (expirando a 25 de maio) por mais seis meses, de modo a estar aos comandos durante a crise actual.
Em todo caso as reações internacionais quanto à crise iraquiana são incoerentes: todos os Estados, sem exceção, condenam o EIIL no Iraque e denunciam o terrorismo, enquanto alguns deles — os Estados Unidos e os seus aliados— consideram, no mesmo momento, o EIIL como um aliado objetivo contra o Estado sírio, e alguns comanditam esta ofensiva – os Estados Unidos, a Arábia Saudita, a França, Israel e a Turquia.
Nos Estados Unidos o debate político público opõe os Republicanos, que pedem um reenvolvimento militar no Iraque, aos Democratas, que denunciam a instabilidade provocada pela intervenção de George W. Bush contra Saddam Hussein. Este pequeno jogo oratório permite mascarar que os eventos em curso servem os interesses estratégicos do estado-maior. e que ele está ali directamente implicado.
Seria, porém, possível que Washington tivesse armadilhado Ancara. O EIIL teria, nesta mesma altura, tentado tomar o controlo do túmulo de Süleyman Sah, na Síria no distrito de Raqqa. Esta sepultura é propriedade da Turquia, que dispõe de uma pequena guarnição naquele lugar, em virtude da cláusula de extraterritorialidade do Tratado de Ancara (imposto pelo colonizador francês em 1921). Mas esta ação pode, também, ter muito bem sido comanditada pela própria Turquia, que teria assim pretendido achar um pretexto para uma intervenção aberta na Síria [4].
Mais grave, aquando do cerco de Mossul o EIIL fez prisioneiros 15 diplomatas turcos e suas famílias, além de 20 membros das forças especiais turcas, no seu consulado, provocando a ira de Ancara. O EIIL também havia preso motoristas de camião (caminhão-Br)de pesados, que foram depois libertados. A Turquia que assegurou a logística do ataque do EIIL sente-se traída, sem que se saiba, de momento, se o foi por Washington, Riade, Paris ou Telavive. Este assunto faz relembrar a detenção, a 4 de julho de 2003, de 11 membros das forças especiais turcas pelo exército dos Estados Unidos em Souleimanieh (Iraque), popularizada pelo filme O vale de lobos no Iraque [5]. Este episódio provocara a crise mais importante dos últimos sessenta anos entre ambos países.
A hipótese mais provável é que Ancara não previa participar numa ofensiva tão ampla, e descobriu, no caminho, que Washington programava a criação do Curdistão. Ora, sempre de acordo com o mapa publicado em 2006, este deverá incluir uma parte da Turquia, tendo os Estados Unidos previsto dissecar não só os seus inimigos, mas também os seus aliados. A prisão dos diplomatas turcos e dos elementos das forças especiais turcas seria um meio de impedir Ancara de sabotar a operação.
Chegando na quinta-feira a Ancara vinda de Amã, a representante especial dos Estados Unidos no Conselho de Segurança, a embaixatriz Samantha Power, hipócritamente condenou as ações do EIIL. A presença no Próximo-Oriente da turifirária do intervencionismo moral de Washington, deixa supôr que uma reação dos Estados Unidos foi prevista para este cenário.
Pelo seu lado o Irão disse estar pronto, para ajudar a salvar o governo do xiita al- Maliki, enviando armas e conselheiros militares, mas não combatentes. O actual derrube do Estado iraquiano aproveita à Arábia Saudita, grande rival regional de Teerão, no exacto momento em que o Ministro dos Negócios Estrangeiros(Relações exteriores-Br), o príncipe Saoud Al-Faiçal (o irmão do chefe do EIIL), a convidou para negociações.
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[1] «Blood borders : How a better Middle East would look» (Ing-«Fronteiras de sangue: Como pareceria um melhor Médio-Oriente»-ndT), por Ralph Peters, Armed Forces Journal datado de Junho 2006.
[2] L’effroyable imposture : Tome 2, Manipulations et désinformations (Fr-Ler A Terrível Impostura: Volume 2, manipulações e desinformações-ndT), por Thierry Meyssan, éd. Alphée 2007.
[3] Citado em « Pression militaire et succès diplomatique pour les rebelles syriens» (Fr- «Pressão militar e sucesso diplomático para os rebeldes sírios»-ndT) por Tsabelle Mandraud (com Gilles Paris), Le Monde, 14 décembre 2012.
[4] « Suriye’ye karşı açık savaşa girmek için Türk komplosu» (Fr-«Complô turco para entrar em guerra aberta contra a Síria»-ndT), Voltaire Sitesine, 28 mars 2014.
[5] «L’anti-Hollywood turc à l’assaut des crimes états-uniens » (Fr- «O anti-hollywood turco ao assalto dos crimes americanos»-ndT), por Mireille Beaulieu, Réseau Voltaire, 5 mai 2006.
Thierry Meyssan Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).
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