17/6/2014, [*] Vijay Prashad (de
Beirute), Counterpunch [1]
Traduzido pelo pessoal da Vila
Vudu
“A noite do Iraque é longa
A aurora só raia para os assassinados,
rezando meia reza e sem terminar de dizer um
bom-dia a alguém”
Mahmoud Darwish, Athar
al-Farasha. [2]
A noite
do Iraque - Bagdá
|
Norte
do Iraque, entre a região dos curdos e Bagdá, convulsionado antes da blitzkrieg de
três formações – o Estado Islâmico do Iraque e Síria Expandida (ISIS), o
Exército Islâmico Iraquiano (comandado por ex-ba’athistas) e elementos do
ex-Conselho Shura Mujahedin. Como os mongóis, o ISIS –
a força principal – corre livremente pela paisagem. Não demorou muito para que
soldados do exército iraquiano despissem os uniformes e se unissem às caravanas
de iraquianos que fugiam do norte e do sul, deixando para trás cidades do rio
Tigre, Mosul e Tikrit, e também outras, do oeste, como Tal Afar – pela estrada
que liga o Iraque à Síria. Os soldados iraquianos capturados pelo ISIS e
seus confederados passaram horas de horror.
Os
soldados do ISIS os dividiram em grupos, por seitas. Ante suas
próprias câmeras de vídeo, os soldados do ISIS massacraram os
soldados xiitas – 1.700, conforme relato deles mesmos – e, na sequência,
distribuíram os vídeos on-line. Soldados sunitas foram obrigados,
sob ameaça de morte, a declarar fidelidade eterna ao Estado Islâmico. A
comissária para Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay, já disse que aquelas
mortes são crimes de guerra.
O ISIS é
a força que lidera essa nova aventura, mas não está só. Com ele está o Exército
Islâmico Iraquiano, liderado pelo ex-vice-presidente de Saddam Hussein, Izzat
al-Dori Ibrahim; e a Associação Ulema Muçulmana [orig. Muslim Ulema
Association]. O que liga essas três forças – extremistas da al-Qaeda,
ba’athistas e militares iraquianos que debandaram – é o desespero ante o
sectarismo do primeiro-ministro iraquiano Nouri al-Maliki e os fracassos do
estado iraquiano que não se conseguiu implantar nas cidades predominantemente
sunitas do Rio Tigre.
O Iraque é governado por lobos,
sedentos de sangue, almas sedentas só de riquezas, que deixam a nação afundada
em sofrimento, em medo, em fossas, nas noites escuras iluminadas só pela lua ou
por uma vela, num pântano de assassinatos causados por diferenças ou por
qualquer ridículo desentendimento.
Partiu
para o Irã, farto da política e da violência em sua terra. Esse desespero é que deu ao ISIS a
oportunidade para construir suas bases no norte do Iraque.
O ex-primeiro-ministro britânico Tony
Blair disse que
o crescimento do ISIS nada teria a ver com a Guerra do Iraque
de 2003; que seria resultado da inação do ocidente na Síria.
Mas
o ISIS nasceu em 2004, primeiro como al-Qaeda-no-Iraque,
liderado pelo jordaniano sanguinário Abu Musab al-Zarqawi; dois anos depois,
foi recriado como Estado Islâmico do Iraque. O lento crescimento nas pequenas
cidades do norte do Iraque, entre ex-militares iraquianos e experientes e duros
combatentes ba’athistas ajudou o Estado Islâmico a crescer, apesar de os EUA
terem destruído as cidades de Fallujah e Ramadi, e do Despertar Sunita,
movimento de 2005. Com o interesse pelo Despertar Sunita já sumindo em
Washington e Bagdá, seus militantes uniram-se ao Estado Islâmico. São os
veteranos da insurgência contra a ocupação do Iraque por EUA e Grã-Bretanha.
Absolutamente nada têm a ver com a Síria.
Abu Bakr al-Baghdadi |
Quando
a guerra começou na Síria em 2011, foi o Estado Islâmico no Iraque, sob a
liderança dinâmica de Abu Bakr al-Baghdadi – como Radwan Mortada de al-Akhbar descobriu –
que ajudou a montar a afiliada da al-Qaeda na Síria, Frente al-Nusra. Ao longo
de 2012 e 2013, o ISIS e a Frente al-Nusra começaram a
desentender-se, com a segunda entendendo que teria autoridade sobre a Síria e
querendo que os sírios fizessem a parte principal dos combates naquele país. O
Estado Islâmico expandiu o próprio nome para Estado Islâmico do Iraque e Síria
Expandida [também dito “o Levante” (NTs)], aumentando seu contingente com
combatentes importados de todo o mundo. No início de 2014, já havia cerca de
100 mil combatentes interessados em defender as cores do ISIS. Muitos não são jihadistas, como
descobri, mas veteranos endurecidos do Despertar Sunita e seu
tipo de gente. O ISIS ofereceu o veículo perfeito para suas
frustrações.
Apesar
dos desentendimentos com a Frente al-Nusra, o ISIS manteve o
controle das cidades de Raqqa e Deir ex-Zor no norte da Síria, tomadas desde
meados de 2013. Assaltos a campos de petróleo no leste da Síria e a venda de
antiguidades ajudaram o ISIS a aumentar o fluxo de suas
rendas, as quais, antes, dependiam de impostos cobrado no norte do Iraque e de
doações privadas de xeiques árabes do Golfo. Até semana passada, havia cerca de
500 milhões de dólares nos cofres do ISIS. O saque de Mosul
rendeu-lhes US$ 1,5 bilhões, como mostrou Martin Chulov, do The Guardian,
e a tomada da refinaria de petróleo de Baiji oferece potencial para mais
recursos.
Dado
que as tropas do Iraque ofereceram pequena resistência, o ISIS e
aliados capturaram equipamento militar em excelentes condições, grande parte do
qual oferecido pelos EUA aos iraquianos, para combaterem contra... o ISIS.
Essas armas serão agora usadas na Síria e no Iraque, para promover a agenda
do ISIS (criar um estado islâmico). Umas das primeiras coisas
que o grupo fez quando tomou Mosul foi destruir os postos de fronteira entre
Síria e Iraque, como gesto de propaganda. Sua visão sonhada de um cinturão que
ligue Trípoli (do Líbano) às fronteiras do Irã já é quase realidade.
Nos arredores de
Mosul, um soldado do ISIS
ri, sentado
ante um muro em que se lê:
“O exército iraquiano é um garfo nos Olhos do Terrorismo” |
O
rápido avanço atraiu resposta combinada e coordenada das duas Forças Aéreas,
síria e iraquiana. Helicópteros iraquianos atacaram o cemitério onde está
sepultado Saddam Hussein em al-Auja, perto de Tikrit. Foi recado de Bagdá aos
ba’athistas, e planejado para incendiar, muito mais do que para conter. É muito
perigoso. O nacionalismo iraquiano morreu asfixiado nos cárceres do [partido]
Ba’ath – e já não é alguma espécie de base à qual o governo de Nouri al-Maliki
possa recorrer. Ele está confiando na moeda do sectarismo.
A
coordenação entre os exércitos da Síria, Iraque e Iran – com a Turquia nas
coxias – já está montada. Mas é coordenação que sempre cheirará a sectarismo, a
menos que a Turquia tome parte nas operações, o que pode acontecer se vir que a
fragmentação esteja levando à unidade entre os Curdistões sírio e iraquiano.
Esse Curdistão unificado, terra dos curdos, seria desafio direto à Turquia.
Melhor matar essas possibilidades quando ainda em botão.
Clamores dos sindicatos iraquianos, de que o povo combaterá contra o ISIS, numa plataforma nacionalista, como se ouviram, de Falah Alwan, da Federação dos Conselhos de Operários e Sindicatos do Iraque, não serão ouvidos. Poucos podem avaliar o que Alwan diz quando diz que “exigimos clara e diretamente o fim do sectarismo” – objetivo muito nobre, mas inaudível ante as barulhentas armas sectárias do ISIS. E entrega o povo curdo à guerrilha peshmerga curda e à Unidade de Defesa Popular (YPG) curda; e os xiitas a al-Maliki e aos milicianos seus preferidos.
Os arsenais-cofres de sectarismos,
que a campanha “Choque e Pavor” dos EUA abriu em 2003, fornecem hoje a moeda
que mais circula no Iraque e na Síria – uma tragédia de descomunais proporções.
O ISIS avançou
pelo Tigre rumo a Bagdá, mas foi detido perto de Samarra. Não por militares
iraquianos que fizessem um muro ali – em foto feita nos arredores de Mosul, um
soldado do ISIS ri, sentado frente a um muro em que se lê “O
exército iraquiano é um garfo nos Olhos do Terrorismo” – Aquele exército
desapareceu. Dele, já não se vê nem traço.
Em
lugar daquele exército, só se veem hoje milícias xiitas, como Asa’ib Ahl al-Haq
(AAH), dissidência do Exército Mahdi, muito prestigiada por al-Maliki. Seu
líder, Qayis Khazali, foi expulso do Exército por al-Sadr, por ser imprevisível
e incontrolável. Seu grupo permaneceu ativo no Iraque, acusado de ludibriar as
forças de segurança e de reunir os combatentes mais cruéis ativos na região do
santuário de Sayida Zainab em Damasco, Síria. Os soldados do Hezbollah reclamam
que os combatentes do AAH têm de receber treinamento à parte, para se acalmarem
e aprenderem a se autocontrolar. O importante clérigo xiita aiatolá Ali Sistani
emitiu uma fatwa conclamando “todos os iraquianos fisicamente
capazes” a defender o Iraque contra o ISIS. Foi como acionar o
detonador do AAH e seus ramos coligados. Ammar al-Hakim, líder do Supremo
Conselho Islâmico do Iraque, despiu o traje de clérigo e meteu-se em uniforme
de campanha, de soldado. Aquela luta é assim: sectária até o fundo, por dentro
e por fora.
Antes de partir para o Irã, al-Sadr criticou muito o sectarismo de al-Maliki e o crescimento do poder de grupos como o AAH. Disse que estavam alienando os iraquianos e preparando a mesa para grandes confusões. Agora, está conclamando para que se reforme seu Exército Mahdi, e para uma manifestação de força, marcada para o próximo dia 21 de junho. É pouco provável que seja ouvido em outros grupos, fora dos caixotes sectários para os quais os iraquianos provavelmente se encaminharão.
Não
há qualquer base objetiva para o nacionalismo iraquiano, como tampouco há para
o nacionalismo sírio. São países fraturados, quebrados pela guerra. Sírios e
iraquianos são prisioneiros numa prisão em chamas. Não há saídas fáceis, sem
barreiras.
As
promessas dos EUA, de que bombardearão o ISIS, do céu, não ajudam
nem aliviam em nada. No máximo conseguirão deter o avanço deles, mas não
diminuirão o poder deles, que se alastra de partes de Aleppo na Síria, até os
arredores de Bagdá no Iraque. E, aqui, quem mais tem a perder é o Irã.
O
Irã já mandou grupos de seus Guardas Revolucionários para ajudar a formar uma
linha de defesa na província de Diyala, cuja principal cidade Baquba, é o berço
onde nasceu o Estado Islâmico do Iraque. É a parte do Iraque onde vivem xiitas
e sunitas, e será bom teste para aferir a unidade de todos contra o ISIS e
a favor de qualquer coisa que não seja o sectarismo de al-Maliki.
Guardas
Revolucionários da República Islâmica do Irã
|
Al-Sadr,
pelo que me disseram, está interessado em criar uma versão iraquiana do
Hezbollah, com raízes na comunidade xiita do Líbano, mas com aspirações de ser
uma força árabe nacionalista.
A
criação dessa força contribuiria, sim, na direção de construir uma plataforma
não sectária, a partir da qual combater o ISIS. É ação mais
efetiva, que uma campanha de bombardeio.
[*]
Vijay Prashad é professor de estudos
internacionais no Trinity College. Dentre outros livros, é
autor de The Darker Nations: A People's History of the Third World e Arab
Spring, Libyan Winter. Publica
regularmente em Asia Times Online, Frontline magazine e Counterpunch. É entrevistado regularmente pela TRNN
- The Real News Network - sobre Geopolítica e Política internacional.
Notas
dos tradutores
[1] Dica de Pepe Escobar, pelo Facebook.
[2] Orig. “Iraq’s night is long / Dawn breaks
only to the murdered, Praying half a prayer and never finishing a greeting to
anyone”.[Trad. ao ing. Sinan
Antoon. Trad. de trabalho, ao port., sem acesso ao original, só para ajudar a
ler].
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