O pesado passivo sino-russo
26/05/2014, in Notes sur un monde à mille temps (excerto), Philippe Grasset
Blog DeDefensa – http://www.dedefensa.org/article-notes_sur_un_monde_mille_temps_26_05_2014.html
Traduzido
pelo Coletivo Vila Vudu
São Petersburgo |
Foi semana agitada e quase histórica,
se não plenamente histórica, pelas regras dos eventos humanos. Veremos o que a
história fará dessa semana. Navegamos da reunião de cúpula Putin+Xi às eleições
europeias, com um pouco mais de exotismo achocolatado de uma Ucrânia que fez
sua eleição presidencial, enquanto, um pouco antes, a partir de 23 de maio, o
Fórum Econômico de São Petersburgo (espécie de Fórum de Davos à moda russa)
reunira uma elite do mundo econômico globalizado na qual não se via – ausência
proclamada e anotada – a parte americanista. (...)
Em todos os casos, numa dessas raras vezes nas quais podemos nos deleitar, é preciso registrar que essa sucessão de eventos, toda ela, aconteceu sem a presença alardeada e oficial da “nação indispensável” que finge ter arregimentado à sua volta o resto do mundo que conta; e que toda essa sucessão de eventos fez-se em torno quase sempre, mas nunca muito longe da nação que os EUA tanto querem isolar do resto do mundo. Em outras palavras, os EUA são a nação ‘indispensável’, mas dispensável; e a Rússia é a nação em torno da qual tudo está convergindo, mas ‘isolada’.
O que se vê nessa constatação irônica, não é nem ‘tendenciosidade’ nem viés de classificação, mas, mais simplesmente, a demonstração já fatigada, de tanto que se repete, de que é preciso desconfiar sempre do que parece ser o ‘fato’ em cuja produção as narrativas washingtonianas tanto obram; e que é mais que hora de admitir que, nesse mundo de2014, reina a desordem. Habemus Barack Hussein Obama (...)
The Economist: revista burríssima
Mas nem por isso passemos tão rapidamente por The Economist. É inegável que a revista tem talento para expor a narrativa do suprematismo anglo-saxão, para dar novo ânimo a certezas periclitantes, para reinflar a húbris quando ela murcha e tomba, como vela de dentro da qual o vento escapou. Mas, de fato, The Economist só faz deixar perceber uma completa ignorância. Tudo isso se condensa numa frase lá publicada, que retomamos aqui para desenvolvê-la, porque esse desenvolvimento nos permitirá explicar melhor a “aliança” sino-russa e o que pensam dela os anglo-saxões: “Há apenas 40 anos, Richard Nixon e Henry Kissinger persuadiram a China a voltar-se contra a União Soviética e aliar-se aos EUA.” Não e não. Tal coisa nunca aconteceu!
Nixon-Kissinger |
Que erro! Que absoluto nada saber das realidades das grandes culturas, nos turbilhões ideológicos do século 20! E a revista The Economist quer fazer-nos crer, aliás, porque a própria revista crê, ela mesma, nessa tolice – é a ignorância que brota da húbris anglo-saxônica – que Nixon-Kissinger teriam conseguido, em 1971 o prodígio de desfazer a formidável aliança sino-russa! Assim se reforça a ficção que inventou a habilidade maquiavélica do anglo-saxonismo (Nixon-Kissinger). Mas fato é que dois anos antes, no verão de 1969, no rio Amour que separava as duas potências comunistas, guardas-de-fronteira chineses e guardas-de-fronteira soviéticos trocavam tiros. A URSS preparava planos de ataque nuclear contra a China, antes de a China ter tempo para organizar força nuclear considerável. (Os EUA, que foram indiretamente informados, intervieram com todo o seu peso, para convencer os soviéticos a não reagir.)
Se, durante os anos 1960s, os soviéticos armaram o Vietnã do Norte por envios marítimos que passavam por Haiphong (definida como alvo fora dos limites para aviões dos EUA, de medo de atingirem, por erro, algum cargueiro russo), foi porque a via por estrada de ferro, que seria mais simples, passaria necessariamente pela China, e as primeiras viagens-teste terminaram em pilhagens sistemáticas dos trens russos, pelos chineses (nenhuma pilhagem foi jamais feita pelo Vietnã).
Só um único acordo sino-soviético satisfatoriamente firme foi jamais assinado entre 1949 (vitória de Mao na China) e 1953 (morte de Stálin), porque Mao tinha certa proximidade de métodos com Stálin, e, isso, apesar da experiência de uma URSS mais disposta a apoiar Tchang Kaï-check contra o PC chinês durante os anos 1930. Quanto ao resto, os chineses jamais pararam de fazer chover cataratas de insultos contra os dirigentes soviéticos que vieram depois (Mao detestava Kruchtchev e nunca nem quis saber de Brejnev), todos classificados como “revisionistas” insuportáveis. Oaggiornamento de 1971, de Nixon-Kissinger, com um Mao já envelhecido e um Chou En-lai que se curvava fleumático, era previsível, escrito na natureza das coisas, e evidentemente agradava aos chineses.
Tudo isso para dizer que não se trata, absolutamente, de ressuscitar, hoje, uma aliança sino-russa que nunca existiu.[1]
Estereótipo à maneira anglo-saxônica
Assim o espírito anglo-saxão que dirige o juízo geral do Bloco Atlanticista Ocidentalista (“bloco BAO”), persuadido do próprio brio e da própria visão avançadíssima, acabou por ficar, ele próprio, totalmente cativo dos estereótipos da Guerra Fria. (O grande experimento de Nixon-Kissinger – porque sim, foi um experimento –, não foi, é claro, desfazer uma aliança que não existia, mas, isso sim, fazer EUA e Washington engolirem uma aproximação com a China, no momento em que a pulsão anticomunista dominava todas as cabeças, e metia a China de Mao, necessariamente, como parceira fundamental da URSS.
Há pois dois paradoxos na atual situação.
O primeiro é que a política americanista desenvolveu-se depois da aceleração pela qual passou a crise ucraniana, segundo esse estereótipo da Guerra Fria, como se russos e chineses fossem novamente os aliados fundamentais da Guerra Fria (o que jamais foram), vale dizer: como se a aliança sino-russa se resumisse a uma dinâmica natural.
O desestruturamento dessa política americanista é de tal ordem, reforçado por uma extraordinária arrogância de opinião e comportamento, que esse movimento que involuntariamente reforçou a aproximação russo-chinesa desenvolveu-se ao mesmo tempo em que os serviços do sistema de comunicação de Washington garantiam que a Rússia estaria ‘isolada’ e que a China votaria conforme o desejo dos EUA, na Assembleia Geral da ONU. (A estupidez dessa sequência alcançou o auge quando a embaixadora Samantha Power dos EUA afirmou, no tom de certeza histérica que a caracteriza, que a abstenção dos chineses no voto que condenaria o referendo da Crimeia teria sido ‘prova’ do alinhamento dos chineses às posições dos EUA. Como se sabe, era exatamente o oposto [ver o comentário de 28/3/2014[3]]).
Em outras palavras e para voltar à questão da dinâmica, a inacreditável pressão que Washington aplicou – seja contra a Rússia, na questão ucraniana, seja contra a China, na visita de Obama e no encorajamento anti-China que inflou entre os japoneses – provocou uma aceleração decisiva na aproximação sino-russa, que, a partir do encontro Putin+Xi tomou dimensão verdadeiramente estratégica. O cúmulo do ativismo americanista manifestou-se quando os EUA, adotando postura cenográfica à Snowden, acusaram a China de crime de “ciber-hostilidade” e inculparam quatro funcionários chineses (com fotos em cartazes de “Procurados”), no dia em que Putin chegava a Xangai.
Estátua ao mentor da política externa atual dos EUA |
A narrativa da entente Putin Obama
O segundo paradoxo é que o endurecimento dos antagonismos e o aspecto estratégico da aproximação sino-russa em pleno auge de crises desestabilizantes para os dois, faz-se em nome, principalmente, da moderação dos dois parceiros. Tanto Putin como a direção chinesa não deixam de exibir tendência centrista de extrema moderação na questão de suas relações com o Bloco Atlanticista Ocidentalista, por mais que o ‘ocidente’ os condene pelo oposto.
É essa moderação que impede chineses e russos de reagir com mais vigor, cada um de seu lado, às pressões do Bloco Atlanticista Ocidentalista, e é essa pressão antagonista do BAO que os empurra, para compensar o que se poderia tomar por fraqueza – com risco real de converter-se, sim, em fraqueza –, a reforçarem-se mutuamente, exaltando a aproximação, até que a comunicação assuma o esboço de uma aliança estratégica fundamental.
Russos e chineses, adeptos obcecados da estabilidade e do equilíbrio nas relações internacionais, nada temem mais do que temem a desordem que a política dos EUA e do BAO suscita. Essa moderação de julgamento conduziu-os, paradoxalmente, por causa das pressões e desse sistema-extremismo do BAO que alimenta a desordem, a proclamar implicitamente uma aliança que também é vista como ato estratégico fundamental.
Pode-se ver facilmente que Putin a todo momento recoloca sobre a mesa sua vontade de moderação e apaziguamento. Diz que não se trata de segundo episódio da Guerra Fria, que ninguém quer (vide RT, 24/5/2014), – e todos lhe desejamos boa sorte!
Robert Parry, de ConsortiumNews, em artigo de 24/5/2014, no qual detalha a política do Departamento de Estado dos EUA para a Ucrânia como “manual do fiasco diplomático”, garante que, segundo a narrativa habitual e à qual ele mesmo já muito contribuiu, que há uma nova tentativa de entente pessoal Putin-Obama, prevista para a ocasião das comemorações do desembarque de 6 de junho:
“A questão chave na Ucrânia agora é: conseguirão Putin e Obama superar a histeria de bater no peito da Washington oficial, e desescalar a violência – bem como a retórica – para melhor sorte de todas as partes racionais que estão em confronto? Tenho informações de que Putin, embora irritadíssimo por Obama ter, de início, seguido a manada anti-Rússia, já recomeçou a trabalhar com Obama, com vistas a um possível encontro na Normandia, dia 6 de junho, nas cerimônias em honra aos 70 anos do Dia D.”[4]
Essa postura de Putin, que se considera ainda como tática e que é bem mais que apenas tática, acabou por atrair as críticas de seus principais seguidores, entre os quais dissidentes do bloco BAO.
Por exemplo, eis o que disse Finian Cunningham, à rede PressTV.ir, dia 24/5/2014, sobre a declaração de Putin na qual reiterava que respeitaria “o veredito das urnas” na Ucrânia, dia 25 de maio:
“O presidente Vladimir Putin da Rússia disse no Fórum Internacional de Negócios em São Petersburgo, que seu governo reconhecerá os resultados da eleição presidencial que se realiza nesse fim-de-semana na Ucrânia. Parece sinalizar considerável concessão que o líder russo faz, para aplacar o regime de Kiev apoiado pelo ocidente [...].
Mesmo assim, parece ser erro tático de Putin concordar com o que faça a operação de mudança de regime patrocinada pelo ocidente na Ucrânia e a campanha terrorista a que o regime está submetendo a população dissidente, e dar uma falsa credibilidade a uma eleição-farsa. Não se aplaca uma fera sem lei, com tapinhas no ombro. A fera sem lei – a junta em Kiev apoiada por Washington – só entende a linguagem da força. Moscou melhor faria se condenasse aquele regime, como vinha fazendo até recentemente, e a ridícula eleição-farsa que a junta impostora está impondo ao povo ucraniano. Um governo de terroristas não deixa de ser governo de terroristas porque se oferecem algumas poucas urnas ao povo.”
Sejam essas críticas fundamentadas ou não, e que Putin (e Xi) sigam visivelmente uma concepção moderada de política, nada disso impediu que se fizesse a aproximação sino-russa; assim sendo, as pressões prosseguirão pelo bloco BAO – o que implica que os dois países (Rússia e China), consequentemente, enfrentarão a necessidade de manter uma linha firme contra o bloco BAO. É uma lógica irresistível, que domina todos os atores, e que, para russos e chineses, os põe, finalmente e decididamente, no campo anti-Sistema.
Deslegitimação: fecha-se o círculo
Esses vários episódios mostram a grande desordem e a confusão das diversas políticas maquinadas pelo Sistemasapiens [orig. sapiens-Système] com as respostas antissistema que as acompanham e completam, ao final dessa “semana histórica”, “histórica” em sentido corriqueiro e “histórico” também por causa das notícias que saem do front democrático do exercício do direito de votar.
Por enquanto, não nos demoraremos na eleição triunfal do “rei do chocolate”, aplaudido como o salvador-mediador da Ucrânia dividida pela fúria e pela desordem. (Afinal, as notícias sobre o possível envolvimento[5] do presidente checheno e de seus batalhões no caldeirão ucraniano podem revelar-se mais importantes...) Consideraremos aqui, agora, essas sim, a eleição do novo Parlamento Europeu, escrutínio em geral sem sabor nem vigor algum, mas que, dessa vez, toma dimensão extraordinária e inscreve-se sem hesitação nessa “semana histórica”.
Já se conhecem os resultados, e pode-se dizer que já se os conheciam antes, mas ver a coisa, aí, à nossa frente, é enorme choque psicológico. A compreensão do significado dessa eleição europeia vai contribuir um pouco mais a favor da empreitada já bem avançada de deslegitimar os sistemas-governança e sistemas-direção na Europa, e, com eles, a “ideia europeia”.
Enquanto o bloco BAO aí está em todos os cantos, de olho na brecha para ensinar suas surpreendentes lições de governança realista e moralista, mesmo assim ele continua a dissolver-se por dentro. De que valem tantas lições políticas na França e no Reino Unido, com essas eleições que dão o primeiro lugar ao Front National francês (25% dos votos) e ao UK Independence Party [Partido Independente do Reino Unido], UKIP britânico (28%), partidos que se situam necessariamente na lógica anti-Sistema?
Sobretudo a França, com seu sistema presidencial fortemente apoiado sobre a legitimidade, está hoje feito navio sem leme e timão para dirigi-lo, como bandeira sem mastro para içá-la. Há nisso tudo uma bela lógica: a crise da legitimidade francesa é perfeitamente proporcional à impostura das políticas feitas em nome da tal ‘legitimidade’ depois de 2008-2009.
Pode-se dizer, como dizia ontem à noite, em tom de lástima, o bravo José Bové, que trocou sua foice de insurgido anti-Sistema pela habitual recuperação-Sistema, que são apenas eleições europeias, “que as pessoas aproveitaram para votar na direita e manifestar sua cólera”. Parece ser bem verdade – embora pouco gentil com a Europa –, mas é falar a favor do 25 de maio, e sem avaliar o impacto do “fato democrático”, quer dizer: para ser séria a deslegitimação das autoridades oficiais, ela implica, pelo efeito contrário, a legitimação dos atos anti-Sistema, e seja qual for a via usada para impô-los.
... Mas o essencial, para nosso objetivo, continua a ser conectar esse evento à série que estamos examinando, a partir da reunião de cúpula sino-russa e do caldeirão ucraniano. Pode-se conectá-lo mediante uma observação sobre uma inesperada convergência, que amplia ainda a percepção desse fato maior da deslegitimação no interior do Sistema, essa terrível empreitada de cupins[6]; vale dizer, a convergência entre a fúria popular contra as orientações políticas que as eleições europeias manifestam, – o que legitima as eleições, curiosamente, pela via inversa, – e a fúria das elites econômicas e investidoras, manifesta à meia-voz por um Reiner Hartmann, contra “essa gente que toma decisões políticas irresponsáveis” que captura as tais elites como reféns e atrapalha seus magníficos negócios russos...
Esses mesmos “irresponsáveis” deslegitimados pela sua base popular, que sofre sem alívio sob os golpes do sistema econômico que o Big Business lhes impõe, Big Business o qual, por sua vez, volta-se contra os “irresponsáveis” que o mesmo Big Business privou de poder político real... Fechou-se o círculo, full circle como dizem os amigos anglo-saxões, fechou-se o círculo das contradições do sistema levadas a um ápice de exacerbação particularmente rico e “federador” de várias crises, ao mesmo tempo crônicas e paroxísticas, segundo o dia, os humores e o gesto político.
Uma escolha espiritual
... Porque, não há dúvidas, tudo está conectado, da aliança apertada e estratégica dos dirigentes ao mesmo tempo dentro do Sistema e anti-Sistema que são Putin e Xi, à estranha convergência da fúria dos oprimidos e dos opressores contra os mesmos “irresponsáveis” dos rumos políticos vítimas das manobras secretas do Sistema ao qual as manobras servem. O Sistema é efetivamente impiedoso. Devora seus filhos, os faz entre-destruirem-se uns os outros; semeia a tempestade e colhe os desastres do dia seguinte, até o ponto de sofrer, o próprio Sistema, em seus fundamentos; ele se autodestrói com a mesma voracidade que aplica a destruir toda e qualquer estrutura que atrapalhe seu caminho.
Nada disso tem qualquer sentido se não se lhe atribui um sentido de autoridade, vestindo o espetáculo dessa imensa desordem que se agarra com furor a quantos nós górdios e a quantas crises haja hoje dessa dimensão metafísica à qual recorremos constantemente, nós também. Ou nada compreendemos, porque nada há a compreender, e então nós balançamos sobre o nada a que fomos conduzidos por nosso niilismo; ou nada compreendemos, porque nosso olhar sempre habituado apenas aos sinais de nossa razão subvertida tampouco tem a necessária acuidade para franquear as dimensões decisivas. Mais que uma conclamação objetiva da situação do mundo, há aí uma escolha para o espírito. É boa hora para falar do famoso “livre arbítrio” deles – que eles exerçam então o livre arbítrio, pela audácia do pensamento, mais que pelo respeito às encomendas [orig. audace de la pensée plutôt que par respect des consignes]...
[1] A
matéria de The Economist está em
[3]http://www.dedefensa.org/article-la_chine_de_la_prudence_l_anti-supr_matisme_du_bloc_bao_28_03_2014.html
[5]http://www.dedefensa.org/article-interf_rences_tch_tch_nes_mercenaires_en_ukraine_26_05_2014.html
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