A Lei da Ficha Limpa e os tratados internacionais
A luta contra a impunidade, muitas vezes, pode gerar excessos que, se não controlados pelas instituições internas, deverá ter como último flanco de luta os organismos internacionais
por Luiz Guilherme Arcaro Conci — publicado 25/04/2014 13:02
Agência Brasil
Manifestação no Supremo Tribunal Federal (STF) durante o julgamento da legalidade da Lei da Ficha Limpa
“Pau que bate em Chico, bate em Francisco”. Ditado Popular
Na quarta-feira 23, o presidente colombiano, em entrevista coletiva, afirmou que cumprirá a medida cautelar (espécie de decisão provisória) proferida pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos que garante ao prefeito de Bogotá, Gustavo Petro, o direito de ficar no seu seu cargo mesmo após a decisão do Procurador Geral da Nação (chefe do Ministério Público) que o levaria a perder o referido cargo em decorrência da suspensão dos seus direitos políticos por 15 anos.
Trata-se de caso interessante para algumas reflexões sobre o caso brasileiro da Lei de Ficha Limpa e suas repercussões no campo dos direitos políticos e, especialmente, do exercício de cargos políticos. E também em razão da falta de percepção de que nem sempre dar mais poder a autoridades fiscalizadoras significa menos impunidade.
O caso é o seguinte. Petros, eleito prefeito de Bogotá por uma coligação de partidos de esquerda, decidiu algo que não parece fora de prumo: que o serviço de recolhimento de lixo da capital deixasse de ser feito por empresas privadas, que lucravam demais e prestavam um serviço contestável - quem já esteve na capital colombiana sabe do que estou falando. Petros não é um desconhecido. Foi senador e candidato derrotado nas eleições de 2010 à presidência. Causa estranheza ser um dos mais cotados pleiteantes ao mesmo cargo nas próximas eleições presidenciais...
Como proveniente de movimentos políticos de esquerda desde sempre, e cumprindo algo que hoje em dia ainda consegue diferenciar ideologias partidárias – o tamanho e a função do estado – decidiu que, ao fim do contrato com tais empresas privadas o serviço seria novamente estatizado. Para isso criou empresa pública. No momento em que tal empresa começou a executar o serviço, sabidamente complexo, alguns problemas começaram a surgir, decorrentes da falta de procedimentos técnicos fixados: ineficiência derivada da novidade do serviço. Não se o acusa de corrupção ou conduta parecida.
Quando isso se passava, o Procurador Geral – sabidamente ligado à direita e a movimentos conservadores – determinou a abertura de expediente administrativo para investigar o caso. Até aí, nada demais, em uma democracia. Ocorre que, ao final do processo administrativo, aberto em função do caos derivado do momento inicial da prestação do serviço de coleta de lixo, o que gerou acúmulo de lixo na cidade. Entendeu o Procurador que isso provocara dano ambiental e que era razão para inabilitá-lo por 15 anos, o que faria com que perdesse o cargo. Assim, simples: uma autoridade administrativa decide, unilateralmente, a suspensão dos direitos políticos de um cidadão. Sem processo judicial. Sem recurso a uma autoridade superior. Mas, paradoxalmente, de acordo com a Constituição e com decisões da própria Corte Constitucional colombiana. Como protetor do interesse público e fiscal da atividade exercida por políticos eleitos (agentes políticos) e demais servidores públicos, teria a suposta competência de decidir. Sem a necessidade de uma decisão judicial.
Em janeiro desse ano, decisão final da Procuradoria manteve a pena. Desde então, uma batalha tanto em tribunais administrativos quanto judiciários colombianos foi instaurada.
Em 18 de março, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos expediu uma decisão cautelar (provisória) determinando que se respeite o mandato de Petros até que ela mesma decida a petição da qual deriva a medida (Pet 1742-30). Ou seja, garantiu a manutenção de Petros no cargo para o qual foi eleito. Na decisão, faz referência a um caso conhecido da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Leopoldo Lopez Mendoza v. Venezuela), em que o estado venezuelano foi condenado em função de imposição de pena de perda de direitos políticos a um cidadão sem que fosse decorrência de um processo judicial com decisão transitada em julgado – da qual não caibam mais recursos, ou seja, decisão definitiva.
Desde então, o Estado colombiano vem se opondo ao cumprimento da decisão, mesmo sendo signatário da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, da Carta da OEA e de Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem. Ou seja, em atitude de clara prática de ilícito internacional. O presidente Santos se recusava a cumprir a decisão internacional.
Na semana passada, uma corte de Bogotá decidiu, em ação de tutela, que o Estado colombiano tem a obrigação de cumprir a decisão cautelar da Comissão Interamericana e o presidente resolveu, definitivamente, cumprir o que lhe foi determinado. Foi necessária uma decisão judicial interna para fazer com que uma autoridade pública, o chefe de Estado, cumprisse uma decisão de um tribunal internacional.
O caso tem questões interessantes não somente para a Colômbia, mas para o Brasil.
A primeira diz respeito à necessidade de cumprimento de decisões de organismos internacionais dos quais os estados nacionais sejam parte. Não há soberania bastante para descumprir decisões proferidas por sistemas jurídicos de proteção de direitos humanos, aos quais o estado nacional adere voluntariamente, assumindo direitos e deveres de cunho jurídico. Isso implica em colocar não somente a Colômbia, a Venezuela e outros estados na quadra dos que praticam ilegalidade.
O Brasil, especialmente, em razão do descumprimento da decisão de 2011, que suspendia as obras da Usina de Belo Monte (proferida da mesma forma pela Comissão Interamericana, que determinou a suspensão das obras) e Gomes Lund ou Guerrilha do Araguaia (proferida pela Corte Interamericana que exige a supressão da Lei de Anistia do ordenamento jurídico brasileiro) também se enquadra nesse rol. Em função de não cumprir tais decisões, parece que só se quer participar de sistemas internacionais de direitos humanos quando são inefetivos ou omissos.
A segunda diz respeito ao poder atribuído a algumas autoridades, especialmente Estados nacionais que convivem com a corrupção, a impunidade e morosidade dos processos judiciais. Acredita-se que dando vastos poderes a autoridades fiscalizadoras se gera mais controle. Isso geraria, por si só, a diminuição daqueles males. Ocorre que, em um Estado de Direito democrático, os procedimentos são também meios de controles dos excessos praticados por aqueles que têm poder de impor sanções que implicam em severas limitações a direitos fundamentais.
Enquanto tais decisões satisfazem a sanha de perseguir uma classe de agentes bastante desacreditada, a dos políticos parece, ao olhar comum, que o poder não exige controle, tendo em vista a potencial virtude dos seus resultados. Ocorre que “pau que bate em Chico, bate em Francisco”, ou seja, tudo vai bem até o momento em que uma autoridade claramente abusa do seu poder em benefício próprio e contra o interesse dos mesmos protetores destes “justiceiros modernos”. Puro equívoco. Controlar os controladores é uma exigência de estados constitucionais. Não pode haver autoridades que monopolizem a realização da justiça.
A terceira e última diz respeito à Lei de Ficha Limpa brasileira, tão defendida e fruto de iniciativa popular. A norma tem problemas que, fatalmente, nos levarão ao Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos. Lembremos que a lei admite a suspensão de direitos políticos de cidadãos sem decisão judicial transitada em julgado, ou seja, pendente de recurso, tendo em vista que as decisões proferidas por colegiados (tribunais, etc.) já produzem efeitos, independentemente de haver ainda recursos pendentes. Ou que permite que decisão de tribunais de contas (colegiados altamente contestados no nosso país quando à sua politização), por exemplo, gerem os mesmos efeitos.
Inevitavelmente, a luta contra a impunidade, muitas vezes, pode gerar excessos que, se não controlados pelas instituições internas, deverá ter como último flanco de luta os organismos internacionais. A Constituição, nesse sentido, já não é mais o último bastião da proteção dos direitos humanos. Os tratados internacionais de direitos humanos, caso contrariados, se mais protetivos aos direitos da pessoa humana, devem prevalecer.
Além disso, as três questões acima mostram o quanto temos de nos habituar a uma nova realidade que é jurídica e pode produzir repercussões políticas sensíveis no âmbito interno dos estados nacionais que decidem, por vontade própria, participar de sistemas internacionais de proteção de direitos humanos. Nesse sentido, a política nacional se internacionalizou.
Luiz Guilherme Arcaro Conci, doutor em Direito Constitucional, é professor da Faculdade de Direito da PUC-SP, onde é coordenador acadêmico do curso de Pós Graduação Lato Sensu em Direito Constitucional. É Professor titular da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e presidente da Coordenação do Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos do Conselho Federal da OAB.
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