O QUE É “REFORMA”?
O curioso caso da Grécia e da
Europa
por James K Galbraith
tradução do Coletivo de Tradutores da Vila Vudu
“Estou perdido, fui assassinado,
cortaram-me a garganta, roubaram meu dinheiro! Que fez isso? Quem me rouba?
Onde se esconde? Que faço agora? Corro? Fico? Como, onde está o ladrão? Quem me
roubou (Agarra o próprio braço.) Ah, fui eu mesmo... O ladrão sou eu, que me
roubo eu mesmo... Estou louco, já não sei o que digo... Já morri. Estou morto.
Estou enterrado. E ninguém se interessa por me ressuscitar”
[MOLIÈRE, O Avarento, “Ao ladrão”]
[MOLIÈRE, O Avarento, “Ao ladrão”]
Na viagem de volta de Berlin na 3ª-feira, o ministro das Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, disse-me que a palavra “reforma” começou a ser usada, com o sentido com que é usada hoje, no período médio da União Soviética, especialmente nos anos de Khrushchev, quando intelectuais modernizantes procuraram introduzir elementos de descentralização e processo de mercado num sistema esclerosado de planejamento. Naqueles anos, quando os americanos lutavam por direitos, e alguns jovens europeus ainda sonhavam com revolução, a palavra “reforma” não era muito usada no ocidente. Hoje, numa estranha virada de convergência, virou palavra de ordem para a classe governante.
A palavra, “reforma”, tornou-se central no cabo-de-guerra entre a Grécia e seus credores. Pode ser possível algum dinheiro novo de alívio – mas só se os gregos concordarem com “reformas”. Mas que reformas, e para que finalidade? A imprensa-empresa comercial lança, usa e reusa a palavra, “reforma” no contexto grego, como se houvesse claro e amplo entendimento sobre o que a palavra significa.
As específicas reformas que os credores da Grécia exigem hoje são mistura peculiar. Visam a reduzir o Estado e, nesse sentido são “orientadas pelo mercado”. Ao mesmo tempo são o máximo concebível contra promover descentralização e diversidade. Ao contrário, trabalham para destruir instituições locais e impor um modelo único de política a toda a Europa, com a Grécia não no ponto de descarte, mas, de fato, na vanguarda. Nesse sentido, as propostas são totalitárias – e, por mais que o pai filosófico aí seja Friedrich von Hayek, o pai político, para dizê-lo logo, sem meias palavras, é Stálin.
A versão que se tem na Europa Moderna, para o stalinismo de mercado, até aqui, e no que tem afetado a Grécia, tem três principais pinças. A primeira tem a ver com as aposentadorias; a segunda, com os mercados de trabalho; e a terceira, com as privatizações. E há a questão que tudo envolve, dos impostos, ‘austeridade’ [é arrocho!] e sustentabilidade da dívida, à qual podemos voltar mais tarde.
Com respeito às aposentadorias, os credores exigem que valor equivalente a 1% do PIB seja cortado esse ano do pagamento de aposentadorias, num país no qual quase metade das aposentadorias estão abaixo da linha de pobreza. A específica exigência cortaria certa de 120 euros, de pensões de no máximo 350 euros por mês. O governo replica que, por mais que o sistema de aposentadorias tenha de ser reformado – a atual idade para aposentadoria é insustentável –, aquela reforma só pode ser feita gradualmente e acompanhando um esquema efetivo de seguro-desemprego a ser criado.
Nos mercados de trabalho, os credores já impuseram a quase total eliminação da negociação coletiva, e a redução dos salários mínimos. O governo diz que o efeito dessas medidas é informalizar o mercado de trabalho, de modo que o trabalho não é registrado e não há aposentadorias a pagar, o que, por sua vez mina também o sistema de aposentadorias. A proposta grega é que se projete um novo sistema de negociação coletiva dos salários, que atenda ao que exige a Organização Internacional do Trabalho.
Para as privatizações, os credores exigiram a venda de aeroportos, portos navais, usinas de eletricidades, dentre outros itens do patrimônio público, e tudo isso deve ser vendido rapidamente. Aqui, a objeção dos gregos nem é entregar alguns itens do patrimônio público à administração privada ou estrangeira, mas, mais, ter de vender aqueles itens a preços mínimos, sem qualquer exigência, sem conservar para o Estado sequer número suficiente de ações que lhe dê o controle acionário. Assim, na privatização em curso do porto de Pireus, vendido à empresa chinesa Cosco, o governo insistiu em que houvesse um plano de investimento e direitos trabalhistas assegurados aos empregados. (Completando a total virada pós-moderna na linguagem, tem-se aqui um governo de esquerda num país capitalista, que impõe direitos de organização sindical dos empregados, a uma empresa comercial multinacional cujo controle acionário pertence a estado e governo comunistas.)
Quanto aos impostos, os creditores exigiram forte aumento no Imposto sobre Valor Agregado [orig. value-added tax (VAT)] – que já estava em 23%. Dentre outros itens, a carga recairá sobre remédios (e, assim, sobre os mais velhos), e nas taxas especiais de que usufruem as ilhas gregas (cerca de 10% do continente, conforme a população), onde se concentra o turismo e onde, portanto, os preços já são mais altos. O governo argumenta que aumentar impostos que incidem sobre atividades turísticas e sobre o turismo fere a competitividade, e que o efeito final do aumento de impostos será reduzir a atividade e agravar o problema da dívida. O que é urgentemente necessário, em vez de aumentar impostos, é melhorar a arrecadação e pôr fim à evasão desse IVA, medidas que permitirão reduzir os impostos cobrados.
Falta pois, às reformas que os credores exigem, bem... o que falta é, precisamente, “reforma”. Cortar aposentadorias e aumentar o IVA não é reformar. Essas ações nada acrescentam à atividade econômica nem à competitividade. Privatizar, por preços de liquidação de fim de estoque pode levar a monopólios privados predatórios, como qualquer pessoa que viva na América Latina ou no Texas sabe muito bem. Desregular o mercado de trabalho desse modo é, na essência, experimento não ético com seres humanos, imposição de dor como ‘terapia’, o que se confirma rapidamente por consulta aos anais do FMI, nem faz muito tempo, logo aí, em 2010. Ninguém pode pretender que cortes nos salários possam tornar a Grécia efetivamente competitiva, contra Alemanha ou Ásia, para atrair empregos da indústria. O que acontecerá é que todos os gregos com capacidades competitivas deixarão o país.
Reformar, em qualquer sentido verdadeiro, é processo que exige tempo, paciência, planejamento e dinheiro. Reformar aposentadorias e a seguridade social, modernizar os direitos trabalhistas, privatizar o que não interesse ao Estado e à sociedade manter, e promover arrecadação efetiva de impostos, isso, sim, é reformar.
Também são reformas as medidas relacionadas à racionalização da administração pública, do sistema judiciário, à fiscalização do pagamento de impostos, à integridade dos dados estatísticos e outras coisas, em torno das quais praticamente todos concordam em princípio, e que os gregos estão interessadíssimos em fazer e já estariam fazendo, se os credores permitissem, mas não permitem porque lhe interessa não reformar coisa alguma, por razões comerciais.
O mesmo se pode dizer de um programa de investimentos, que enfatizasse os serviços avançados que a Grécia tem condições para prover incluindo atenção à saúde, cuidados de idosos, educação superior, pesquisa e artes. É preciso reconhecer que a Grécia não será bem-sucedida se tiver de ser convertida em país igual aos demais. A Grécia tem de ser diferente – é país de lojas pequenas, hotéis pequenos, alta cultura e mares amplos, de praias abertas. Uma reestruturação da dívida que devolva a Grécia aos mercados (e, sim, pode ser feito, e os gregos tem proposta para fazer precisamente isso) poder ser, por qualquer juízo racional, uma reforma.
E é assim que se vê que o claro objetivo do programa dos credores é, portanto, não reformar. É reduzir à metade os total de impostos arrecadados, em momento de desastre. Cortes nas aposentadorias, cortes nos salários, aumentos nos impostos e liquidação de patrimônio valioso são oferecidos, sob o ‘argumento’ delirante de que a economia se recuperará apesar da sobrecarga de impostos mais altos, menor poder de compra e repatriação para o exterior, dos lucros advindos de privatizações.
Essa mágica já foi testada sem sucesso, por cinco anos, no caso da Grécia. Eis por quê, em ver de se recuperar como havia quem previsse depois do ‘resgate’ de 2010, a Grécia já perdeu até agora mais de 25% da própria renda, e a sangria não tem fim à vista. Eis por quê a dívida saltou, de uma relação de 100% com o PIB, para 180%, se se consideram os valores de face.
Mas admitir esse fracasso no caso da Grécia seria pôr abaixo todo o projeto político europeu, e a autoridade dos que estão no comando.
Então as conversações gregas continuam no mesmo passo. De fato, não é empate, porque os gregos estão sob pressão extrema. Ou cedem ao que querem os credores, ou podem ver os bancos gregos fecharem e o país expulso da Eurozona, com consequências muito graves – pelo menos no curto prazo. Os credores sabem disso. Então continuam a empurrar os gregos contra a parede – sem jamais mudar a posição deles, ao mesmo tempo em que ‘denunciam’ que os gregos não se esforçam o suficiente. E a cada polegada de terreno que os gregos cedem, os credores pressionam mais e mais.
Essa é a feia dinâmica da negociação desigual, em um lado forte e um lado fraco, nesse caso complicado pelo fato de que o lado credor não tem liderança unificada, e portanto ninguém do lado credor – a menos que Angela Merkel afinal assuma e apresente-se para o papel – pode conceder qualquer coisa significativa, que ajude a encaminhar acordo significativo. Assim as escolhas vão-se estreitando. Ou o governo grego cederá demais, perderá apoio e entrará em colapso, nesse caso, seja mais um país governado por bancos, seja mais um país a eleger algum Aurora Dourada nazista, a democracia estará morta na Europa. Ou, no final, os gregos serão forçados a tomar o próprio destino nas mãos – risco enorme e custo altíssimo – e esperar que lhes venha alguma ajuda, venha de onde vier.
James K. Galbraith é professor da Lyndon B. Johnson School of Public Affairs de la
Universidad de Texas (Austin). Dentre seus últimos livros, Inequality
and Instability: A Study of the World Economy Just Before the Great Crisis (2012) e The
End of Normal: The Great Crisis and the Future of Growth (2014). É coautor, com Yanis
Varoufakis e Stuart Holland, da Modesta Proposición para o fim da crise na eurozona (2013).
Postado Ppr roberto Pires Silveira – obrigado ao Coletivo de
Tradutores da Vila Vudu e à RedeCastorphoto
--- @castorphoto
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