domingo, 11 de maio de 2014

Os russos estão chegando!
Os russos estão chegando!


O mito do expansionismo soviético


por William Blum


mortes em Odessa 
Então, quais são as novidades? Na Líbia, na Síria e em outros lugares, os Estados Unidos estiveram ao lado de tipos como a al-Qaeda. Mas não na Ucrânia. Essas são as boas notícias. As más notícias são que na Ucrânia, os Estados Unidos estão ao lado de tipos neonazistas que – dando um tempo de seus desfiles pomposos com seus símbolos que parecem uma suástica, berrando pela morte de judeus, russos e comunistas – em 02 de maio incendiaram o edifício de um sindicato em Odessa, matando dezenas de pessoas e mandando centenas para hospitais; dessas vítimas, muitas foram espancadas ou baleadas enquanto tentavam desesperadamente escapar das chamas e da fumaça; as ambulâncias foram impedidas de chegar aos feridos. Tente agora encontrar pelo menos um dos componentes da mídia americana que tenha dado atenção e mostrado o horror.

O que este último exemplo do “excepcionalismo” da política externa americana vem a ser? Inicialmente, um ponto a ser considerado é o que o ex Secretário da Defesa e Diretor da CIA Robert Gates disse em suas memórias recentemente publicadas: “Quando da desintegração da União Soviética no final de 1991, [Secretário da Defesa Dick Cheney] tentou o desmembramento não apenas da União Soviética e do Império Russo, mas da própria Rússia, para que nunca mais pudesse ser uma ameaça para o resto do mundo.” Serve como uma colocação antiga para uma nova guerra fria, enquanto o cadáver da velha ainda está quente. Em seguida, a OTAN começou a cercar a Rússia de bases militares, instalações de mísseis e de seus membros, enquanto sonhava por talvez a mais importante parte que necessitava para fechar o cerco – a Ucrânia.


Arsenyi Yatseniuk
Em fevereiro deste ano, oficiais do Departamento de Estado, pondo de lado a diplomacia, aderiram a manifestantes anti governamentais em Kiev, capital ucraniana, incentivando e distribuindo comida conforme divulgado pelo infame áudio entre o embaixador dos Estados Unidos para a Ucrânia, Geoffrey Pyatt e a funcionária do Departamento de Estado, Victoria Nuland, antiga embaixadora dos EUA para a OTAN e antiga porta voz do Departamento de Estado sob Hillary Clinton. Acordaram na conversação sobre quem deveria governar a Ucrânia após a queda de Viktor Yanukovich. O seu maior favorito para esse posto era Arseniy Yatseniuk.

Meu querido e recentemente falecido amigo de Washington, John Judge, gostava de dizer que se você quisesse chamá-lo de “teórico da conspiração”, você obrigatoriamente teria que chamar muita gente de “teórico das coincidências”. De fato, conclui-se que somente pela mais incrível das coincidências é que Arsenyi Yatseniuk veio a se tornar o novo primeiro ministro. Em breve ele poderá ser encontrado em reuniões privadas e entrevistas públicas para a imprensa, em companhia do presidente dos Estados Unidos e o Secretário Geral da OTAN, assim como em animadas reuniões com os futuros donos da Ucrânia, o Banco Mundial e o FMI, preparando-se para impor ao país suas terapias de choque normais (e nefastas [NT]). Os atuais manifestantes na Ucrânia não necessitam ser PHDs em economia para ver o mau agouro dessa situação. Eles tem conhecimento sobre o empobrecimento da Grécia, Espanha, et al (1).

Apesar de seus muitos defeitos, a derrubada do governo anterior, democraticamente eleito, também será em breve a causa do desprezo dos ucranianos pelo novo regime. Mas todas estas motivações são ocultadas pela mídia americana, que se refere aos manifestantes apenas como “pró russos”. Há uma exceção, embora superficial e sem destaque: em 17 de abril o Washington Post trouxe reportagem de Donetsk com muitos ucranianos orientais entrevistados pelo autor e que disseram que a maior parte das agitações na região acontecem motivadas pelo medo da população de “dificuldades econômicas” e do plano de austeridade a ser aplicado pelo FMI, que tornará suas vidas ainda mais difíceis: “Num tempo cada vez mais perigoso e delicado, quando se batalha contra Moscou por mentes e corações através do leste ucraniano, o governo pró ocidente não viu nada melhor a fazer que preparar-se para iniciar medidas de ajuste financeiro através de choques econômicos para atender às demandas do Fundo Monetário Internacional (FMI).” Não se pode deixar de notar também que Arsenyi Yatseniuk tem uma coisa chamada “Fundação Arsenyi Yatseniuk”. Se você acessar o website da fundação, notará os logotipos dos “parceiros” da fundação. Entre outros, estão a OTAN, o NED “National Endowement for Democracy”, Chatham House (Royal Institute of International Affairs [no Reino Unido]), o German Marshall Fund (um  think tank fundado pelo governo alemão em honra ao plano Marshall dos Estados Unidos), assim como alguns bancos internacionais. Precisa comentar?

Parece que as autoridades americanas pensam que, ao se afastar da al-Qaeda e de neonazistas, adquirem carta branca para dizer ou fazer qualquer coisa em sua política externa. Em 02 de maio em uma conferência de imprensa, o presidente Obama ao se referir ao tratado da OTAN e à Ucrânia, disse: “Estamos inabalavelmente unidos em torno do art. 5º, de comprometimento com a segurança de nossos aliados da OTAN.” (O que afirma o artigo 5º? “as partes concordam em que o ataque a qualquer deles ... será considerado como um ataque a todos.”) Será possível que o presidente esqueceu que a Ucrânia (ainda) não é um membro da OTAN? Na mesma conferência, o presidente se referiu ao “recém eleito governo em Kiev”, quando a realidade dos fatos é que o governo atualmente instalado em Kiev chegou ao poder através de um golpe de estado, e que os ministros da Defesa, da Agricultura e do Meio Ambiente são oriundos de um partido neonazista da extrema direita.

terroristas chechenos

O horror hediondo praticado pelos ultranacionalistas da extrema direita ucraniano não pode ser exagerado. Os companheiros que foram chamados no início de março pelo líder do Pravy Sektor (Setor da Direita - partido de cores neonazistas da Ucrânia [NT]), são os infames terroristas chechenos, incitados à prática de outras ações terroristas na Rússia.

Há uma importante diferença entre a nova e a velha Guerra Fria. Tanto o mundo quanto o povo americano não serão mais tão facilmente convencidos pela lavagem cerebral como eram anteriormente.

Ao longo de uma década, quando pesquisava para escrever meus primeiros livros e artigos referentes à política externa dos Estados Unidos, uma coisa me deixava sempre surpreso em relação à Guerra Fria: era o fato de que a URSS parecia sempre saber o que exatamente estavam os Estados Unidos fazendo, enquanto o povo americano não sabia. De vez em quando, entre os anos 50 e 70, um leitor atento notaria uma pequena menção no fundo de uma página interna do New York Times relatando que o Pravda ou o Izvestia afirmavam que algum recente golpe militar ou assassinato político na África, Ásia ou América Latina era obra da CIA; o Times sempre acrescentava uma nota de autoridades do Departamento de Estado classificando a notícia como “absurda”. E fim; mais nenhum detalhe era apresentado; e não era necessário. Por que dar ao leitor americano uma oportunidade de raciocinar? Era apenas propaganda comunista. Eles pensavam que enganavam a quem? A ignorância/cumplicidade do sistema de mídia daquela época permitiu aos Estados Unidos de então escapar ileso de uma série de crimes internacionais e corrupção. Apenas nos anos 80, quando comecei a pesquisar mais seriamente, o que acabou resultando mais tarde no meu primeiro livro, Killing Hope (matando a esperança), que eu me tornei capaz de ligar os pontos e concluir que os Estados Unidos realmente planejaram e executaram determinados golpes e assassinatos, e ainda muitos outros, para não dizer inúmeros atentados a bombas, guerra química e biológica, manipulação de eleições, tráfico de drogas, sequestros, e outras coisas mais que não apareciam nem no sistema de imprensa nem nos livros escolares (uma parcela considerável parecia ser ignorada também pelos soviéticos).

As duas últimas décadas foram pródigas em inúmeras revelações sobre os crimes dos Estados Unidos. Muitos americanos atualmente, assim como o resto do planeta se tornaram mais educados. São hoje muito mais céticos em relação às declarações dos Estados Unidos e seus acólitos na mídia.

Recentemente, declarou o presidente Obama: “A forte condenação que recebe ao redor do mundo, mostra o quão grande é o erro histórico da Rússia neste caso.” Ma-ra-vi-lho-so... principalmente vindo de um homem que se aliou a jihadistas e neonazistas e levou a guerra a sete nações. No último meio século passado, qual país recebeu condenações mais amargas que os Estados Unidos? Somente nos livros de história publicados nos Estados Unidos, o país se encontra no lado certo da história.

Como virtualmente todos os americanos, Barak Obama talvez goste de acreditar que a União Soviética esteve sempre do lado errado da história e também em seu próprio território, com a provável exceção da Segunda Grande Guerra Mundial.

Porém, em janeiro passado, uma pesquisa levada a efeito por um centro russo independente de pesquisas e relatado no Washington Post em abril, 86 por cento dos entrevistados com mais de 55 anos responderam lamentando o fim da União Soviética; 37 por cento das pessoas com idade entre 25 e 39 anos afirmaram a mesma coisa (desde a queda da União Soviética as pesquisas tem sempre resultados semelhantes. Do USA Today em 1999: “desde a queda do muro de Berlim, os alemães orientais imaginavam, uma vida de liberdade em que os bens de consumo seriam abundantes e que suas dificuldades desapareceriam. Dez anos depois, cerca de 51 por cento dizem que eram mais felizes nos tempos do comunismo.”)

Existe um provérbio russo que diz: “Tudo o que os comunistas diziam sobre o comunismo era mentira. Mas tudo o que diziam sobre o capitalismo acabou sendo verdade.”

Uma semana antes de publicada a reportagem mencionada acima, o jornal publicou um artigo sobre o nível de felicidade ao redor do mundo, o qual contém estas linhas verdadeiramente encantadoras: “Uma pesquisa mundial revelou que a vida das pessoas mais velhas parece ter melhorado, com a exceção da Rússia” ... “A vida sob o governo de Putin parece ser essencialmente uma espiral descendente que leva ao desespero” ... “Na Rússia, o doce abraço da morte é a única coisa que pode ser olhada de frente.”

Não. Não acho (sério) que isso foi bolado para ser uma espécie de sátira. Parece mais um artigo científico com gráficos e tudo, mas deve ser lido como algo saído diretamente dos anos 50.

A visão que os americanos têm de si mesmos não é necessariamente mais distorcida que a encontrada entre outros povos em qualquer lugar do mundo, porém a distorção americana pode levar a muito mais sofrimento. Mais e mais americanos e membros do Congresso Nacional convenceram-se de que o cerco que a OTAN promove contra a Rússia é benigno – afinal, nós somos os bons rapazes – e não entendem como a Rússia não consegue ver isso.

Do ponto de vista de Washington, a primeira Guerra Fria era muitas vezes designada como de “contenção”, referindo-se à política dos Estados Unidos de prevenir a disseminação do comunismo ao redor do mundo, tentando impedir a ideia mesmo de comunismo ou socialismo. Ainda há resquícios disso – pense na Venezuela ou Cuba, por exemplo – mas a nova Guerra Fria deve ser vista mais em termos de estratégia militar. O pensamento de Washington se dirige a quem possa impor barreiras à constante expansão do império, colocando em função disso mais bases e outras necessidades militares.

Por qualquer lógica que se olhe, é imperativo que os Estados Unidos desistam de todo desejo de trazer de volta a Geórgia e incorporar a Ucrânia à OTAN. Essa é a maneira mais fácil de trazer as botas russas para o terreno ucraniano, ainda mais com a ideia de que Washington quer colocar tropas da OTAN junto à fronteira russa e expulsá-los de sua histórica base naval no Mar Negro, na Criméia.


O mito do expansionismo soviético

Ainda há quem se depare com referências midiáticas ao “expansionismo russo” e ao “império soviético”, ao qual, claro, se adiciona o grande favorito, “o império do mal”. Estes termos ainda são usados largamente em função do antigo controle soviético dos Estados da Europa Oriental. Mas será que a criação desses satélites após a segunda grande guerra foi ato de imperialismo ou expansionismo? Não seria o impulso decisivo outra coisa totalmente diferente?
URSS
Em um intervalo de menos de 25 anos, a Rússia foi invadida pelas potências ocidentais nada menos que três vezes. Uma delas foi a “intervenção” de 1918/20 e as outras duas as Grandes Guerras Mundiais. Tendo causado somente nas duas guerras, cerca de 40 milhões de mortos. A Europa do Leste serviu como caminho de passagem fácil para levar a cabo as invasões. Será esse o motivo pelo qual os soviéticos resolveram fechar a passagem depois da Segunda Grande Guerra? Em qualquer outro caso, os americanos não teriam nenhum problema em ver essa situação como um ato de autodefesa. Acontece que no caso de Guerra Fria, esse pensamento não encontrará abrigo no discurso oficial.
Os estados bálticos da União Soviética – Estônia, Lituânia e Letônia – não fizeram parte dessa “auto estrada” e muitas vezes frequentaram a mídia por causa de seus pedidos por mais autonomia em relação a Moscou, uma história “de colher” para a imprensa americana. Os artigos lembram invariavelmente que esses Estados que “uma vez foram independentes” foram invadidos em 1939 pela União Soviética e incorporados nas suas repúblicas socialistas estando “ocupados” desde então. Outro caso notório do brutal imperialismo russo. Período histórico: gravado na pedra.

Os três países, essas coisas acontecem, eram parte do Império Russo desde1721 até a revolução russa de 1917, em meio à Primeira Guerra Mundial. No final da guerra, em novembro de 1918, com a derrota alemã, as nações aliadas vitoriosas (Estados Unidos, Grã Bretanha, França, et al) ou permitiram ou encorajaram as forças alemãs a permanecerem no Báltico por um ano completo, com o objetivo de esmagar a propagação do bolchevismo naquelas plagas; e isso com assistência militar ampla das nações aliadas. Em todas as repúblicas, os alemães instalaram no poder colaboradores para que declarassem  independência em relação ao novo estado bolchevique - que, nesta ocasião, estava tão depauperado pela Guerra Mundial, a Revolução e a guerra civil prolongada pela intervenção dos “aliados” - que nada tinha a fazer a não ser aceitar o fait accompli (fato consumado). Havia que salvar o que restou da embrionária União Soviética.  

Como não podiam resolver esse estado de coisas e para ganhar pelo menos na propaganda, os soviéticos anunciaram que renunciavam voluntariamente às repúblicas bálticas, em conformidade com seus princípios antiimperialistas e de autodeterminação. Mas não é de surpreender que os soviéticos continuassem a ver o báltico como uma parte legítima de sua nação ou que eles tenham esperado até reunir forças suficientes para recuperar o território.

Então, tivemos o Afeganistão. Certamente, foi um impulso imperialista. Ocorre que a União Soviética conviveu com o Afeganistão a seu lado por mais de 60 anos sem incorporá-lo. Quando houve a invasão, o principal motivo foi o envolvimento dos Estados Unidos em um movimento majoritariamente islâmico para derrubar o governo afegão que era amigável a Moscou. Não havia possibilidade de que o governo soviético tolerasse um governo pró EUA em sua fronteira, da mesma forma que os Estados Unidos não tolerariam um governo pró União Soviética no México.

Além disso, caso o movimento rebelde tivesse tomado o poder, certamente instalaria um governo islâmico fundamentalista, que estaria em boa posição para fazer numerosos prosélitos muçulmanos na fronteira das repúblicas soviéticas.



(1)   et al – expressão latina que significa “entre outros” ou “e outros” muito usada em publicações científicas, nas citações e no jargão jurídico.

William Blum
é o autor de Killing Hope: (Intervenções do Exército Americano e da CIA desde a Segunda Guerra Mundial) – especialista e estudioso das relações exteriores dos EUA desde antes de 1980.
Post original: http://www.counterpunch.org/2014/05/09/the-russians-are-coming-the-russians-are-coming/

Tradução: mberublue


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